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BIOÉTICA E EMERGÊNCIA

  • Foto do escritor: Carlos Frederico de Almeida Rodrigues
    Carlos Frederico de Almeida Rodrigues
  • 10 de mai. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 14 de out. de 2020




The right of Emergency - IFMSA




A BIOÉTICA E A MEDICINA DE URGÊNCIA: SER PACIENTE EM UM PRONTO SOCORRE É PERDER SUA DIGNIDADE?

Carlos Frederico de Almeida Rodrigues[1]

Adriano Seikiti[2]

Para início de conversa, vamos definir o que é emergência: é uma propriedade que uma dada situação assume quando um conjunto de circunstâncias a modifica. Tomados de forma isolada, seus elementos não justificariam uma medida imediata, mas o conjunto e a interação entre seus constituintes sim .[3]

A assistência em situações de emergência e urgência se caracterizam pela necessidade de um paciente ser atendido em um curtíssimo espaço de tempo. A emergência é caracterizada como sendo a situação onde não pode haver uma protelação no atendimento, o mesmo deve ser imediato. Nas urgências o atendimento deve ser prestado em um período de tempo que, em geral, é considerado como não superior a duas horas.

Essa assistência tem inúmeros aspectos éticos que merecem ser discutidos. A justificativa ética para o atendimento diferenciado que estas situações merecem está baseada, filosoficamente, em Hegel. Para o filósofo alemão, o "direito à emergência" é o direito que cada indivíduo tem de abrir uma exceção a seu favor, em caso de extrema necessidade. Segundo Thadeu Weber, "a situação de emergência não invalida a lei, mas mostra que ela não é absoluta. (...) Isto significa dizer que é necessário levar em conta as circunstâncias de cada situação". Retornando com Hegel, "a vida tem um 'direito de emergência' ".

Ao transportarmos essas afirmações para a realidade de nossos hospitais de atendimento de urgência que, para dizer o mínimo, é ambígua, assim como o é nosso sistema de saúde, iniciamos uma escalada de dilemas Éticos. Explico o motivo desta ambiguidade pelo fato de que a maioria dos hospitais de urgência em nosso país são públicos, sendo assim, sofrem as agruras do abandono que se traduzem em falta de leitos, profissionais sobrecarregados e uma alta demanda decorrente do índice de violência (trânsito, trabalho e pública) elevado em nossas cidades. Por outro lado, os hospitais privados, que não possuem essas agruras, em sua grande maioria não contam com toda uma equipe pronta para o atendimento de urgência, o que torna extremamente caro o atendimento, sendo assim, atuam mantendo seus profissionais no sistema de sobreaviso, ou seja, à distância. Isso posto, como promover um atendimento digno ao paciente que precisa de um atendimento de emergência, onde entra a dignidade do nosso paciente que procura o atendimento de urgência?

Vamos nos ater, nesse texto, aos hospitais públicos, onde maior parte de nossos estudantes fazem seus estágios em prontos-socorros. Entrar na sala de observação ou atendimento desses hospitais é, para dizer o mínimo, angustiante, homens e mulheres amontoados pelos corredores, olhos vidrados em jovens profissionais, tão angustiados quanto eles mesmos, na esperança de uma ajuda. Após longa espera, muitas vezes ao lado de pacientes terminais, quando não mortos (fato inúmeras vezes presenciado por esse que escreve), aguardando atendimento em locais sem estrutura, finalmente a ajuda chega e o paciente é internado ou atendido, fim do sofrimento ou início de outras afrontas a dignidade humana? A lista é grande, dentro de uma unidade de emergência, em uma enfermaria improvisada pela falta de leitos, a demora no recolhimento da urina, a demora na limpeza e higiene dos pacientes com eliminações fisiológicas, a maneira de servir a alimentação, dentre outras, são apenas a demonstração cabal de que o tratamento do paciente como objeto não termina quando esse é atendido, mas perpetua-se como uma engrenagem maligna na qual o médico e os demais profissionais de saúde estão inseridos. Em resumo, se a lentidão marcante do sistema e o descaso ocorrem até com processos considerados de fácil resolução, que dirá com processos mais elaborados. Isso que, nem sequer abordamos da falta de recursos, da má remuneração profissional, dos equipamentos com defeitos, da falta de equipamentos, e materiais básicos, o que desestimula os profissionais. Além destes problemas, digamos assim ´físicos´, surgem na medicina de urgência outros dilemas, tais como: critérios de acesso aos cuidados (triagem); limites de tratamento, medidas extraordinárias, medidas fúteis; preservação da privacidade e confidencialidade. A relação é enorme e o problema parece incapaz de ser resolvido.

É claro que não pretendemos aqui apontar soluções para todo o sistema de saúde de nosso país, mas pretendemos refletir sobre como cada um de nós médicos, que atendemos no pronto socorro, podemos transformar nossa atuação em algo mais ético e digno para nossos pacientes e para nós mesmos. Para tanto, acreditamos ser a bioética um instrumento extremamente prático e que pode nos ajudar nessa tarefa árdua. Bioética, segundo Reitch (1978), “É o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e a atenção à saúde, enquanto que esta conduta é examinada a luz dos princípios e valores morais”[4]

As questões que envolvem as atividades de assistência, ensino e pesquisa em emergências e urgências podem ser mais claramente discutidas utilizando, os princípios da Beneficência, da Autonomia, da Justiça, como instrumentos didáticos. Estes princípios estão sempre presentes no dia-a-dia dos profissionais que atendem este tipo de intercorrências.

Em que pesem então as diversas abordagens bioéticas, talvez a mais conhecida seja a principialista do Instituto Kennedy, elaborada por Tom L. Beauchamps e James Childress no livro “Princípios da Ética biomédica” de 1978, possui 4 princípios básicos, sem hierarquia definida entre eles: Beneficência, Não-Maleficência, Justiça e Autonomia. Vamos discorrer um pouco sobre cada um deles no particular do atendimento de urgência:

1 – Não-maleficência – não é um princípio novo, desde as origens da medicina Hipócrates já dizia: “ Primum non nocere”. Primeiro não prejudique seu paciente. Parece um princípio simples, se não pode ajudar, não prejudique. Deixa de ser simples quando nos colocamos em um momento de atendimento de urgência, onde decisões têm de ser tomadas de maneira rápida, com materiais escassos e, na maioria das vezes, por profissionais jovens e inexperientes. A manutenção desse princípio é de suma importância para que o médico, caso não se sinta capaz de ´resolver´ o problema do paciente, ao menos amenize o seu sofrimento, sem prejudicá-lo, até que possa dar continuidade, de maneira adequada, ao atendimento necessário.

2 – Beneficência – “A profissão médica, teoricamente, seria a própria encarnação desse princípio em seu objetivo de aliviar a dor e curar o doente, independente de identidades e contextos”[5]. Mas só teoricamente. Todo atendimento médico deve objetivar o bem de nosso paciente. Isso é óbvio? Nem tanto, em uma medicina baseada muitas vezes no progresso pessoal do próprio médico, seja ele financeiro (subordinar-se aos interesses das empresas farmacêuticas ou de órteses e próteses) ou acadêmico (realizar o maior número possível de cirurgias para desenvolvimento de uma técnica) ou na defesa pessoal desse próprio médico (solicitação exagerada de exames radiológicos, expondo o paciente a riscos desnecessários), o bem estar do paciente nem sempre é o primeiro objetivo.

Devemos nos lembrar desse princípio na medicina de urgência para no exíguo tempo que dispomos para atender nosso paciente, pensarmos na satisfação de quais interesses estamos atuando: em benefício próprio, de empresas ou do paciente?

3 – Justiça – Tratar com equidade todos os pacientes que procuram nossa ajuda, sem distinção alguma entre eles. Falar de justiça, quando sabemos que mesmo em nossos hospitais públicos, aqueles que possuem uma ´indicação´ não clínica – amigos de funcionários, políticos ou mesmo financeira – ultrapassam filas e conseguem tudo mais facilmente, é bastante difícil. O médico, como profissional liberal que é, deve agir de acordo com o interesse de seu paciente e sentir-se protegido por seu conselho profissional para assim agir. Não deve submeter-se a interesses que não sejam o do seu paciente e o benefício da instituição onde trabalha.

4 – Autonomia – Falar de autonomia do paciente na situação de urgência é, por si só, uma situação paradoxal: o paciente em coma, inconsciente e outros, possui capacidade de autonomia? Sim, a inconsciência não retira nossa dignidade e, cada vez mais, com o advento das afirmações legais de não reanimação, por exemplo, devemos estar atentos a Autonomia do nosso paciente, que não é dada pelo médico ou retirada pela patologia. A Autonomia é inerente ao ser humano, seu direito de escolher seu tratamento, por quanto tempo e de qual maneira. Essa última afirmação nos leva a outra encruzilhada: como escolher o tratamento em determinadas regiões do Brasil, onde sequer temos um hospital ou médico, quiçá dois para escolher?

Essa análise inicial promove questionamentos que provocam solavancos nos alicerces de nossas instituições hospitalares e para os quais exigem-se do médico – muitas vezes no início de sua formação – respostas também urgentes. São eles, por exemplo, os casos em que nas situações de atendimento de emergências ou urgências o critério de acesso aos serviços é o da gravidade. De acordo com este critério, os pacientes em situação de emergência são atendidos em primeiro lugar. Muitas vezes pacientes em situações não-urgentes também procuram este tipo de serviço por ser, teoricamente, mais disponível. Isto cria um dilema para o profissional responsável pela tarefa de triar. Muitos pacientes não tem outros recursos para recorrer, nem sempre a instituição dispõe de um pronto-atendimento para atender a esta demanda, assim como pode não existir uma adequada interação com o sistema ambulatorial, a ponto de garantir que este paciente será atendido por um profissional nos próximos dias. Frente a esta situação difícil, muitas vezes o profissional opta por atender a estes pacientes, consciente de que está distorcendo o objetivo do serviço. Isto pode acarretar uma outra situação difícil, que é a de que os recursos emergenciais poderão estar não disponíveis para os pacientes que efetivamente necessitem deste tipo de atendimento. O princípio da Justiça é que deve ser considerado neste contexto. É muito difícil hierarquizar demandas pessoais por atendimento. Cada paciente sempre acha que o seu problema de saúde, ou de seu familiar, é o mais importante. Os serviços de atendimento de emergências deveriam explicar claramente a sua vocação assistencial para a população. Muitas vezes a confusão entre atendimento de emergência e pronto-atendimento ambulatorial é feita pelas próprias instituições hospitalares e profissionais de saúde.

Outro importante elemento de todo o cuidado à saúde é a relação profissional-paciente. Num serviço de emergência, habitualmente, o contato anterior é inexistente, os antecedentes clínicos são desconhecidos e o nível de ansiedade associado à própria situação dificultam uma boa relação entre os profissionais, seus pacientes e familiares. Nestas situações fica mais difícil ainda manter a privacidade dos pacientes de forma adequada. Nesta área uma outra importante questão é a que diz respeito às condições de trabalho que os profissionais de saúde são submetidos. Muitas vezes é exigido um tipo de atendimento não compatível com as condições materiais disponíveis. As rotinas de trabalho também podem ser um fator estressante a mais. O resultado de todos estes fatores é a constatação de um sofrimento pessoal muito grande, já documentado entre enfermeiros.

Com relação às atividades de ensino em serviços de emergência, estas devem ser criteriosamente planejadas, de forma a evitar que os alunos sejam expostos, desnecessariamente a situações com as quais tenham dificuldades e limitações em lidar. Desta forma, os pacientes e os alunos estariam sendo potencialmente prejudicados.

Para melhor compreendermos as dificuldades que o médico possui em um atendimento no PS, uso de um trecho de um artigo de Carvalho et AL (1999) , “As dificuldades começam pelo que se entende por emergência, urgência, pronto atendimento, passam pelo requisitos que cada tipo de atendimento exige, bem como pelos limites que cada um deles impõe. Um importante elemento de todo o processo de assistência à saúde que é a relação médico-paciente, nos prontos-atendimentos ou nas emergências tende a ser prejudicada. Nesses lugares habitualmente, o contato anterior com o paciente é inexistente, os antecedentes clínicos são desconhecidos e o nível de ansiedade associado à própria situação dificultam a boa relação...[Alem de que] é frustrante para o médico não poder, muitas vezes, seguir os preceitos mais fundamentais de ética e moral na atenção as demandas dos pacientes devido à escassez de recursos e às incoerências do sistema de saúde vigente”[6].

Já a pesquisa em emergência é um assunto extremamente atual e controverso. Inúmeras questões podem ser discutidas, inclusive quanto a sua possibilidade de ocorrer. A montagem dos projetos de pesquisa nesta área deve ter redobrados cuidados éticos e metodológicos. As questões metodológicas mais importantes são as que dizem respeito a seleção da amostra, sua validade interna e externa, critérios de exclusão e identificação de potenciais fatores de confusão. Na área ética o item que mais se destaca é o referente à utilização do consentimento informado.

Por fim, nessa rápida e superficial análise da Bioética Principialista, rogamos que os colegas que se colocarem nesse front que é o PS não esqueçam da dignidade do paciente e da sua própria e saibam que o estudo da Ética, mais do que algo ´chato´ e ´filosófico´ é o estudo da nossa humanidade e a possibilidade de darmos um sentido para nossa profissão, nossa vida e, principalmente, para a vida de nossos pacientes. Não há ambulatório, enfermaria, UTI ou pronto socorro de Bioética. É nestes ambientes clínicos que a Bioética se desenvolve pelas mãos dos profissionais, capacitados não apenas tecnicamente, mas também humanamente, abertos para a tríade da boa relação médico-paciente: rigor na argumentação, abertura ao desconhecido e tolerância para as opiniões e momentos adversos.

A beira do leito é uma tribuna da relação médico-paciente. A bioética cuida para dar voz a todos os vinculados. Não cheguem à beira do leito sem ela.[7] Para tanto, alguns pontos que devem ser levados em conta para o exercício da Bioética nos círculos acadêmicos e profissionais, serão citados: estímulos para criação da disciplina de Bioética em todas as instituições de ensino (média e superior); meios de formação continuada aos profissionais envolvidos na área; e por último, necessidade de espaços privilegiados para o diálogo interdisciplinar entre todas as áreas do conhecimento, unindo esforços para a consecução de objetivos éticos comuns. São estes alguns pontos do qual a prática e a reflexão bioética se propõe a preencher. Acreditamos que para esse objetivo ser atingido, devemos sim, valorizar o aprendizado técnico do futuro profissional médico, mas devemos promover sua aproximação do humano e não apenas do técnico, isso torna-se possível quando nos preocupamos com a formação do ser humano e não apenas do médico como recurso humano para suprir falhas dos sistemas de saúde. Do médico como máquina de uma engrenagem, passível de ser descartado e formado em faculdades que pululam pelo país afora como linhas de produção. Uma aproximação do médico com a cultura, com a política e com outras áreas do conhecimento, pode torná-lo mais aberto e mais apto a entender que nosso atendimento de urgência não pode retirar a dignidade de nossos pacientes e nem a nossa.[8]

[1] Neurocirugião e Neurologista do hospital Policlínica Pato Branco – Pato Branco – PR. Professor de Neurologia e Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade Comunitária da Região de Chapecó – Chapecó – SC. Mestre em Filosofia Política e Ética – PUCRS. [2] Acadêmico de medicina da Unochapecó – Chapecó –SC. [3] http://www.bioetica.ufrgs.br/emergen.htm acessado em 19/10/2012. [4] Reich W.T. Encyclopedia of Bioethics. New York: Free Press-Macmillan, 1978:116. [5] DRUMMOND, José Paulo. Bioética, dor e sofrimento. Cienc. Cult., São Paulo, v. 63, n. 2, Apr. 2011 . Available from <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252011000200011&lng=en&nrm=iso>. access on 20 Oct. 2012. [6] Carvalho PRA, et al. Aspectos éticos e legais na emergência. J Pediatr (Rio J) 1999;75(Supl.2):s307-s14 [7] Sommerman A. Inter ou transdisciplinaridade? São Paulo: Paulus; 2006). [8] Rodrigues CFA. Revista Bioética, vol. 18, No 2 (2010)

 
 
 

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