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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

MITO DA CIÊNCIA NEUTRA

Não há ação humana neutra, uma introdução bioética.

Como já dissemos anteriormente, grande parte dos indivíduos com boa formação acadêmica está dedicada às ciências, sobretudo, às técnicas. Em que pesem diversos fatores (remuneração, mercado de trabalho etc.), um dos grandes motivos para essa procura é a aura de castidade com que nosso ideário veste a ciência. O cientista é visto como alguém isento de pré-conceitos, em busca da verdade a qualquer preço e que para isso dedica toda a sua vida, abre mão de sentimentos supérfluos e traveste-se na própria máquina que objetiva criar.

Mesmo com inúmeros fatos contrários a essa imagem (projeto Manhatan, pesquisas com seres humanos e animais, testes de drogas em populações pobres e o desastre ecológico iminente advindo da intervenção técnica na natureza), a Ciência permanece no subconsciente como libertadora e resolutora dos problemas humanos, problemas muitas vezes criados por ela mesma e por seu braço ideológico, o capitalismo, o efeito estufa é exemplo disso, pois resulta da emissão de gases industriais.

Este capítulo pretende discorrer brevemente sobre as consequências do mito da Ciência (técnica) como atividade neutra. Parte-se do fato de que nenhuma ação humana é verdadeiramente neutra ou desprovida de interesses.

Presta-se para isso a Bioética? Cremos que sim, pois a Bioética é um novo paradigma civilizatório, com preocupações sociais, práxis e intercâmbios (medicina e filosofia, por exemplo). (PELLIZOLI, 1997). É um paradigma que abre fronteiras para se pensar outro mundo possível. Para tanto, temos de analisar por qual motivo estamos em crise no nosso atual paradigma?

Uma das respostas poderia perpassar a questão do reducionismo que o pensamento cartesiano nos traz, reducionismo que passa pela fragmentação do homem[1] e pela perda da dimensão de complexidade. Na área da saúde, isso leva à visão da medicina como “engenharia de órgãos”, em que tudo passa a ser medido, espelhando uma sociedade que delicia-se em seu fetiche tecnológico.

O cartesianismo e a cisão científica, que se pretendem racionais e neutros, não sabem lidar com as dimensões emocionais, objetificando as relações socio-vitais.

As críticas para esse tipo de pensamento estão surgindo de todas as direções, inclusive de dentro da própria Ciência: a física quântica dissolvendo o conceito de matéria, a Teoria da Relatividade derrubando o conceito de Espaço e Tempo e os pensadores Domo Heisemberg enfatizando o papel do observador como parte da experiência científica, o que põe em xeque o princípio da neutralidade.

Essa quebra da neutralidade e a consciência de que, ante um potencial quase escatológico da nossa tecnologia, a ignorância sobre as últimas consequências não seria em si mesma razão suficiente para uma moderação responsável? (Siqueira, 1998). Onde estão a busca da verdade e a neutralidade de Hiroshima, Nagasaki e Tuskeege?

O argumento de que a tecnologia é pura e são os homens que fazem mal-uso dela é, para dizer o mínimo, falacioso, pois a tecnologia é fruto daquilo em que o homem crê e daquilo que ele faz. No que tange à técnica, somos livres apenas para dar os primeiros passos, os demais nos transformam em escravos. (SIQUEIRA, 1998).

O cientista/ciência que é assalariado de um complexo militar/industrial tem de ser muito inocente para não imaginar que seus patrões pretendem fazer algum uso de sua ‘busca pela verdade’. As consequências de seus atos não são meros acidentes, ou é acidente que uma técnica com poder quase ilimitado sinta-se no direito de intervir na natureza provocando consequências catastróficas?

O desafio é entendermos que possuímos mais do que nunca conhecimento científico e capacidade tecnológica e não temos, entretanto, a mínima consciência acerca de como utilizar esse conhecimento para o bem da humanidade. Nas palavras de Einstein: “torna-se claro que nosso desenvolvimento tecnológico superou em muito o nosso desenvolvimento humano”.

Pior, não são poucas as vezes que revestidos pela crença na santidade da ciência, ouvimos que determinada ação é pelo progresso e bem dessa ciência. Pergunto: e o bem da humanidade, onde fica?

O novo saber, pautado no pressuposto da neutralidade, não é mais partilhado: é incorporado aos bancos de dados e usado por decisões de poder (SIQUEIRA, 1998).

O divórcio com a filosofia e a ética fez a ciência perder a consciência de si e tornar-se alheia à subjetividade humana (HUSSERL, 2000).

A única possibilidade de neutralidade do cientista se dá pela eliminação da consciência, assim como a biologia elimina a vida em suas descrições histológicas. O cientista perdeu a consciência, e a tecnociência é tão importante que não pode mais ser decidida somente por ele: toda uma humanidade interessada deve ser ouvida.

É imperativo a construção de um novo paradigma, como dissemos anteriormente, e o tempo para essa construção é o agora, tão agora que quando o dizemos, ele já está passando e o futuro está se tornando sombrio com seu lixo nuclear, com suas catástrofes ecológicas e seus excluídos, muitas vezes frutos de uma pretensa neutralidade de uma ideologia técnico-científica-capitalista.

Por fim, não devemos nos perguntar se ‘podemos’ fazer algo, como se faz na Ciência, mas sim se ‘devemos’ fazer, como o faz um ser humano consciente.

[1] Ver capítulo ‘Religião e Saúde’.

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