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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

BIOÉTICA E PESQUISA COM ANIMAIS

Atualizado: 3 de mar. de 2023




Governo proíbe uso de animais em testes de cosméticos e produtos de higiene



Noruega proíbe criação de duas raças de cães para evitar que animais vivenciem sofrimento

'Temos que mudar a maneira como criamos os cães. A forma como fazemos isso talvez fosse aceitável há 50 anos, mas não agora', afirmou Åshild Roaldset, presidente da Sociedade Protetora dos Animais norueguesa


https://www.gazetaweb.com/noticias/mundo/noruega-proibe-criacao-de-duas-racas-de-caes-para-evitar-que-animais-vivenciem-sofrimento/



Projeto de lei apresentado para prevenir experiências em filhotes nos EUA


https://olharanimal.org/projeto-de-lei-apresentado-para-prevenir-experiencias-em-filhotes-nos-eua/


Texto base para análise bioética da pesquisa com animais.


A experimentação em animais suscita debates calorosos e acirrados há mais de 2000 anos. Envolve questões filosóficas e teológicas profundas, as quais escapam do objetivo deste capítulo, que visa apenas realizar uma introdução deste assunto. Importante sobretudo, para as ciências da saúde, neste momento de pesquisas com células-tronco, experimentação animal, transposição de dados da pesquisa para seres humanos e inúmeras outras questões éticas que surgem nos laboratórios e nas consciências.

Aspectos históricos da pesquisa com animais

A história da relação homens versus animais, ao menos no que diz respeito ao Ocidente e à utilização destes em benefício daqueles, remonta à época de Pitágoras (582-500 a.C.), o qual afirmava que a amabilidade para com todas as criaturas não-humanas era um dever.

Posteriormente, Hipócrates (450 a.C.), o pai da medicina, relacionou o aspecto de órgãos humanos doentes com o de animais, com finalidade didática. Os anatomistas Alcmaeon (500 a.C), Herophilus (330-250 a.C.) e Erasistratus (305-240 a.C.) realizavam vivissecções animais com o objetivo de observar estruturas e formular hipóteses sobre o funcionamento dos órgãos internos dos próprios animais sob análise e dos seres humanos. Galeno (129-210 d.C.), em Roma, realizou vivissecção em animais com objetivos experimentais.

No século XVII, o iluminista, René Descartes (1596-1650) acreditava que os processos de pensamento e sensibilidade faziam parte da alma. Como na sua concepção os animais não tinham alma, não havia sequer a possibilidade de sentirem dor.

A primeira pesquisa científica que utilizou animais foi realizada por William Harvey, publicada em 1638, sob o título Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinius in animalibus. Nesta, foram publicados resultados de estudos da circulação sanguínea de oitenta espécies diferentes.

O filósofo inglês Jeremy Benthan, em 1789, no capítulo XVII de seu livro Introduction to the principles of morals and legislation, retomando ideias já existentes na antiga Grécia, lançou a base para a posição atualmente utilizada para a proteção dos animais. Benthan escreveu: “A questão não é ‘podem eles raciocinar?’ Ou ‘podem eles falar?’ Mas, ‘podem eles sofrer?’”

A publicação do livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859, estabeleceu os pressupostos do vínculo existente entre as diferentes espécies animais num único processo evolutivo. Dessa forma, a teoria de Darwin possibilitou a extrapolação dos dados obtidos em pesquisas com modelos animais para seres humanos.

Um importante episódio para o estabelecimento de limites à utilização de animais em experimentação e ensino foi o que envolveu a esposa e a filha de Claude Bernard. O grande fisiologista utilizou, ao redor de 1860, o cachorro de estimação da sua filha para dar aula aos seus alunos. Em resposta a esse ato, sua esposa fundou a primeira associação para a defesa dos animais de laboratório. Claude Bernard, que deixou inúmeros textos escritos, de excelente qualidade, sobre a ética para com os pacientes, dizia que é parte da postura do cientista ser indiferente ao sofrimento dos animais de laboratório. Em seu livro An Introduction to the study of Experimental Medicine, publicado em 1865, justificava a utilização de animais em pesquisas, alegando o seguinte:

Nós temos o direito de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito, total e absolutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os animais para serviços caseiros, para comida e proibir o seu uso para a instrução em uma das ciências mais úteis para a humanidade. Nenhuma hesitação é possível; a ciência da vida pode ser estabelecida somente através de experimentos, e nós podemos salvar os seres vivos da morte somente após sacrificar outros. Experimentos devem ser feitos tanto no homem quanto nos animais. Penso que os médicos já fazem muitos experimentos perigosos no homem, antes de estudá-los cuidadosamente nos animais. Eu não admito que seja moral testar remédios mais ou menos perigosos ou ativos em pacientes em hospitais, sem primeiro experimentá-los em cães; eu provarei, a seguir, que os resultados obtidos em animais podem ser todos conclusivos para o homem quando nós sabemos como experimentar adequadamente.

A primeira lei a regulamentar o uso de animais em pesquisa foi proposta no Reino Unido, em 1876, através do “British cruelty to Animal Act”. Em 1822, já havia sido instituída a lei inglesa anticrueldade (“British anticruelty act”). Também chamada de “Martin Act” (em virtude de seu defensor: Richard Martin – 1754-1834), aplicava-se somente para animais domésticos e de grande porte. A primeira lei para proteger animais, talvez tenha sido a da colônia de Massachussets Bay, em 1641. Essa lei propunha que: “ninguém pode exercer tirania ou crueldade para com qualquer criatura animal que habitualmente é utilizada para auxiliar nas tarefas do homem”.

No século XIX, surgiram as primeiras sociedades protetoras dos animais. A primeira foi criada na Inglaterra, em 1824, com o nome de “Society for the Preservation of Cruelty to Animals”. Em 1840, essa sociedade foi assumida pela Rainha Vitória, recebendo a denominação de Real Sociedade. Em 1845, foi criada na França a Sociedade para a Proteção dos Animais.

Adolf Hitler, depois de assumir o poder no início da década de 1930, publicou um decreto tornando a experimentação animal ilegal. Embora saibamos que os nazistas utilizaram seres humanos, sem consentimento destes, para suas pesquisas. Nas famosas palavras de Hitler, tem-se a máxima: “Quanto mais conheço os seres humanos, mais gosto do meu cachorro”.

A primeira publicação norte-americana sobre aspectos éticos na utilização de animais em experimentação foi proposta pela Associação Médica Americana em 1909. Devido ao seu alto impacto social benéfico (desenvolvimento das vacinas contra a raiva, tétano e difteria), as pesquisas em animais praticamente não eram questionadas. Em 1959, o zoologista William Russel e o microbiologista Rex L. Burch publicaram um livro no qual, estabeleceram os 3 ‘Rs’ da pesquisa em animais: Replace, Reduce e Refine. Essa proposta não impedia a utilização de modelos animais em experimentação, mas propunha uma adequação no sentido de humanizá-la.

O ressurgimento do debate sobre a utilização de animais em pesquisas e outras atividades (abatedouros, indústrias de cosméticos, transporte etc.) pode, em grande parte, ser atribuído ao professor Peter Singer. O seu livro “Animal Liberation”, publicado em 1975, causou uma polêmica mundial, principalmente os relatos das condições às quais os animais eram submetidos pela indústria de cosméticos e no processo de obtenção de alimentos.

Em vista do surgimento de tantos protestos contra a utilização de animais, a Declaração de Helsinque II, de 1975, adotada na Vigésima Nona Assembleia Mundial dos Médicos, trazia as recomendações de que deve ser tomado cuidado especial na condução de pesquisa que possa afetar o meio ambiente e, de que o bem-estar de animais utilizados para a pesquisa deve ser respeitado.

A Unesco estabeleceu em 1978, em Bruxelas, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. No Brasil, em 2008, publicou-se a lei n. 11.794, conhecida como “Lei Arouca”, que visa regulamentar a utilização dos animais em pesquisas.

A pesquisa com animais deve ter, de uma maneira geral, estas diretrizes mínimas:

1) a definição de objetivos legítimos;

2) a imposição de limites à dor e ao sofrimento;

3) a fiscalização de instalações e procedimentos;

4) a garantia de tratamento humanitário;

5) a responsabilidade pública.

E deve guiar-se por alguns princípios orientadores:

1) que os seres humanos são mais importantes que os animais, mas os animais também têm importância, diferenciada de acordo com a espécie considerada;

2) que nem tudo o que é tecnicamente possível de ser realizado deve ser permitido;

3) que nem todo o conhecimento gerado em pesquisa com animais é plenamente transponível ao ser humano;

4) que o conflito entre o bem dos seres humanos e o bem dos animais deve ser evitado sempre que possível.

Desta forma, a utilização de animais em projetos de pesquisa deve ser uma alternativa ao uso de seres humanos e necessita, para o pesquisa em quetão, ser indispensável, imperativa ou requerida.

Princípios gerais da pesquisas com animais

Os seres humanos são mais importantes que os animais, mas os animais também têm importância. Essa importância é diferenciada entre as espécies animais, isto é, não se pode colocar em um mesmo nível um chipanzé e uma rã. Essa diferenciação leva em consideração estratégias/habiliddes para lidar com problemas, linguagem, estrutura social, rituais, entre outros aspectos. Não podemos avaliar a importância das espécies animais baseados na racionalidade humana como critério de juízo, já que, entre nós, mesmo aqueles desprovidos de razão são detentores de direitos.

A experimentação científica em animais é importante. Algumas experiências, no entanto, são inadequadas do ponto de vista moral, ético e metodológico, devendo sua realização ser até mesmo impedida. Essa posição está de acordo com a nova postura da ciência, onde, segundo pensadores como Morin e Levinas, dentre outros, não há lugar para qualquer ação humana sem consciência e responsabilidade, devido à complexidade do que nos rodeia.

A generalização dos conhecimentos também não pode ser utilizada como justificativa: nem todos os conhecimentos gerados em modelos animais são plenamente transponíveis ao ser humano. O conflito entre o bem dos seres humanos e o bem dos animais deve ser evitado sempre que possível. Ou seja, devemos buscar estabelecer estratégias para minimizar esse confronto, porém não negando a sua existência.

A necessidade de utilização de animais em experimentos pode ser realizada em dois diferentes estágios:

· o pesquisador deve caracterizar que esse é o único meio de estudar a situação proposta, não havendo possibilidade de método alternativo disponível;

· a caracterização da necessidade deve demonstrar que a pesquisa é indispensável, imperativa ou requerida.

A pesquisa é considerada indispensável quando é essencial para que alguma coisa seja feita, por exemplo, quando realmente pode contribuir para o conhecimento básico ou em atividades de ensino ou formação profissional.

A pesquisa é considerada imperativa quando está associada a uma prioridade maior, como as realizadas com o objetivo de minorar o sofrimento de pessoas com SIDA, câncer ou outras doenças graves.

A pesquisa é requerida quando é demandada por uma decisão legal. Neste caso, enquadram-se os testes de novas drogas e de toxicidade de substâncias.

Desde 1959, os 3 ‘Rs’ de Russel e Burch são imprescindíveis para a pesquisa:

Replace – substituição: a substituição dos animais por métodos alternativos, tais como: testes in vitro, modelos matemáticos, simulações por computador, deve ser estimulada;

Reduce – redução de pesquisas científicas em animais: envolve questões éticas e morais; de compaixão; de conservação ambiental; de natureza científica, econômica, política e até mesmo as requeridas por lei.

Refine – refinamento: refinar as técnicas utilizadas tendo por objetivo minimizar a dor e o sofrimento nos experimentos em animais. Tratam-se de cuidados com analgesia e assepsia, questões metodológicas e estatísticas que permitem analisar dados obtidos em amostras progressivamente menores.

A avaliação da pesquisa em animais

A pesquisa em animais, assim como toda e qualquer proposta de investigação científica, deve sempre ser avaliada através de três grandes critérios:

1) geração de conhecimento: inerente ao ato de pesquisar, é a sua justificativa básica e finalidade;

2) exequidade: avaliação dos aspectos metodológicos e éticos, que não podem ser dissociados;

3) relevância: implica uma análise do valor agregado e não apenas do método ou conhecimento. Clotet, em 1997, fez a seguinte afirmação, que sumariza e direciona a avaliação da relevância:“A pesquisa não deve ser banida, apenas deve ser orientada para o bem geral da humanidade.”

Os comitês de ética em pesquisa existem justamente para realizar a avaliação adequada dos projetos de pesquisa, são a garantia de que a sociedade exerce algum controle sobre as atividades de pesquisa. O seu fim último é garantir que os princípios de beneficência, respeito à pessoa e justiça sejam adequadamente observados.

A pesquisa em animais pode ter, basicamente, duas finalidades: a pesquisa vista como meio e como fim. Como meio é a que visa utilizar modelos animais para gerar conhecimentos que sejam transponíveis aos seres humanos; como fim visa estudar os próprios animais e suas características.

Ética e pesquisa em animais silvestres

Quando se fala em ética e pesquisa em animais, lembramos, quase sempre, dos animais criados em laboratório para esse tipo de atividade. Porém, outros animais também são objetos de pesquisa, os silvestres, por exemplo, que exigem, além da reflexão sobre os aspectos éticos da pesquisa, algumas considerações sobre as legislações específicas de captura e manejo de animais silvestres.

Uma importante questão inicial é a da pretensa relação de proximidade entre as espécies a serem estudadas com a espécie humana. A maioria das legislações sobre pesquisa em animais refere-se apenas à utilização de animais vertebrados. Os invertebrados ficam em uma situação de desamparo legal.

A própria coleta de animais silvestres para fins de estudo tem implicações éticas: coleta para estudos redundantes, para catalogação de uma área já estudada ou com o equilíbrio ecológico alterado e outras.

A questão não se esgota na coleta de animais silvestres, também se estende à maneira como são manipulados visando à conservação em coleções, que nem sempre leva em consideração o sofrimento dos animais diante das técnicas utilizadas.

As pesquisas com animais silvestres têm várias outras implicações. A própria presença dos pesquisadores no ambiente acarreta modificações nos hábitos, comportamentos e habitats.

Considerações filosóficas

Muitos filósofos se dedicaram ao tema da utilização dos animais. Vamos, a seguir, examinar alguns deles e suas ideias.

1) Michel Montaigne (1533-1595), em sua “Apologia de Raymond Sebond”, vê os seres humanos iguais – em essência – aos animais. Ele estabelece uma nova concepção teórica do homem, em que este é parte de uma corrente contínua, desde as mais baixas criaturas até o ser supremo. Montaigne não acreditava na supremacia do homem e criticava a pretensão deste em querer julgar os animais. Em vez de indicar as diferenças existentes entre homens e animais, Montaigne discorreu sobre as semelhanças existentes entre ambos, por exemplo quando compara os gestos empreendidos pelos animais para comunicarem-se entre si aos gestos empregados pelas crianças para suprir a palavra que lhes falta. Montaigne posicionava-se contrário à ideia de que nos animais a ação é ‘maquinal’ e nos seres humanos não. E acreditava que raciocínios e meios idênticos aos que acompanham os atos dos seres humanos acompanham os atos de animais, que têm, ocasionalmente, faculdades superiores às dos seres humanos.

2) René Descartes (1596-1650), ao contrário, acreditava que os processos de pensamento e sensibilidade faziam parte da alma. Na concepção de Descartes, somente os homens possuíam alma, logo, os animais eram desprovidos de sensibilidade ou pensamento. Eram tidos como ‘autômatos’. As ideias de Descartes influenciaram os iluministas do século XVII a realizarem seus experimentos, bem como, o desenvolvimento de toda a ciência moderna e contemporânea.

3) David Hume (1711-1776), opõe-se à ideia de que os animais são autômatos e não possuem razão. O filósofo escocês argumenta que parece evidente que tanto os animais como os homens apreendem muitas coisas da experiência e inferem que os mesmos eventos resultarão sempre das mesmas causas. Sendo assim, homens e animais são capazes de acumular conhecimento, o que torna estes, os animais, espécies sensíveis e cuja utilização em pesquisa, portanto, requer cuidados éticos.

4) Jeremy Bentham, em seu livro Uma introdução aos Princípios da Moral e da Legislação (1789), diz que o problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar, tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer? É a partir deste filósofo que se iniciam os movimentos de defesa dos animais.

5) Charles Darwin, em 1859, a partir do livro: A Origem das Espécies, afirmou a semelhança e proximidade entre as espécies animais e o homem. Paradoxalmente, essa proximidade, que poderia suscitar questões éticas, foi utilizada para justificar pesquisas em animais com caracterísitcas próximas às dos humanos, pois favoreceria a transposição para os humanos dos dados obtidos com os animais.

Temos consciência de que as pesquisas com animais são realizadas há milhares de anos e é inegável que trazem benefício para o desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias. Entretanto, o uso dos animais em atividades científicas deve ser substituído, sempre que possível, por alternativas diversas. Quando não for possível fazê-lo, uma reflexão ética faz-se necessária, a partir, por exemplo, dos comitês de ética, visando adequar a pesquisa aos fundamentos de respeito à vida e tolerância.

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