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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

COVID-19 E BIOÉTICA

Atualizado: 6 de dez. de 2023

Efeitos da pandemia e discussões bioéticas


Boris Johnson pede desculpas por dor e perdas durante o covid

Admite que errou durante a pandemia.


https://www.bbc.com/news/uk-northern-ireland-67635566




José Roberto Goldim Com o aumento das taxas de cobertura vacinal na população de alguns países, os governos estão retirando medidas de proteção individual e coletivas que haviam sido impostas às populações. Esta posição deve ser avaliada com a prudência necessária a todas as situações de risco. Esta reflexão deve ser feita desde o ponto de vista pessoal e coletivo. Desde o ponto de vista individual, não existe vacina capaz de proteger integralmente às pessoas. Ou seja, não tem como garantir que a pessoa, uma vez vacinada, está isenta de riscos de vir a se contaminar novamente e manifestar a doença. O que se sabe, até o presente momento, é que havendo uma nova manifestação da doença, existe a possibilidade de que ela seja menos grave. Desde o ponto de vista coletivo, a vacina também não impede o contágio de outras pessoas. As pessoas vacinadas fazem um bloqueio de transmissão, mas não um impedimento total. Quanto mais pessoas vacinadas, menor a possibilidade de contaminação entre os membros de uma população. O importante é saber a partir de qual percentual da população vacinada o risco coletivo de contaminação efetivamente diminui. Desde o ponto de vista teórico, o modelo matemático da percolação, estabelece este valor em 50%. Ou seja, a partir deste valor de conexões estabelecidas, a frequência de novas conexões tende a diminuir. No caso da COVID-19 este valor talvez seja maior, em função do aumento da transmissibilidade das novas variantes do vírus. A estimativa mais frequentemente utilizada está ao redor de 70% da população ser vacinada para que haja a possibilidade de uma efetiva redução de novos casos. A vacinação, desde o ponto de vista individual, reduz a gravidade da doença e, consequentemente, a mortalidade, e, desde o ponto de vista coletivo, o número de pessoas que se contaminam. Estes resultados já estão sendo evidenciados em diferentes estudos. Desta conjugação de perspectivas individuais e coletivas é que surge a necessidade de manter as medidas mínimas e efetivas de proteção. Isto é necessário, pois em várias partes do mundo a pandemia ainda está com altíssimas taxas de transmissão. Da mesma forma, o número de mortes não é uniforme nos diferentes países e regiões dos continentes e os programas de vacinação apresentam desigualdades, inclusive dentro de países com disponibilidades de vacinas. O retorno progressivo das viagens internacionais, mesmo com testagem prévia negativa e com a exigência de vacinação, reduz, mas não elimina o risco de novas contaminações. Vale lembrar que os testes, também não tem uma sensibilidade e uma especificidade que garantam que aquela pessoa específica não seja transmissora. Formas leves da doença não são auto-evidentes, mas ainda assim tem potencial de transmissão. A vacinação, a testagem e as medidas de prevenção, como o uso de máscaras, são os melhores meios de enfrentamento à pandemia. Para ler mais: Atualização em 25/07/2021 https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/07/22/medo-de-escassez-de-comida-cresce-no-reino-unido-por-isolamento-contra-covid




Defensoria pede R$ 60 mi ao CFM por aval ao uso de cloroquina contra covid...





COVID - 19 E CERTIFICADO INTERNACIONAL DE VACINAÇÃO


Na atualidade estão surgindo notícias sobre a exigência de comprovação, em determinados países, da vacinação de COVID-19. Até o momento o Regulamento Sanitário Internacional(RSI) e a OMS ainda não se manifestaram sobre o Certificado Internacional de Vacinação e Profilaxia (CIVP).

O CIVP é um documento que existe há anos, para comprovação de doenças como febre amarela, meningite, poliomielite e etc.

O RSI define que os países podem estabelecer restrições aos viajantes que ingressam em seus territórios com base em questões sanitárias.

Claro que existirão casos em que o a pessoa não poderá ser vacinada, pensando nisso a OMS permite que o médico assistente emita um atestado de isenção de vacinação (AIV). O documento deve ser redigido em inglês ou francês e com informações detalhadas sobre o caso.

A exigência do Certificado visa proteger a população de um território de ser contaminada e o indivíduo que adentra o território e, não está infectado, de infectar-se. É uma política sanitária adequada de proteção individual e coletiva.

Emitir um Passaporte Imunológico para COVID (PIC) para diminuir medidas restritivas e de prevenção é altamente discutível. A prórpia denominação não é adequada, sendo preferível Certificado Internacional de Vacinação (CIV).

Outro problema é a duração da imunidade das atuais vacinas para COVID, muitos estudos ainda são necessários para definir essa questão, ao contrário das patologias mais antigas.

Levanta-se questionamento sobre discriminação na exigência do CVI, posto que a vacina estará disponível para toda a população, não há discriminação.

Propostas de empresas privadas é que são discriminatórias, pois exigem, no mínimo, um celular ou alguma contrapartida para certificados digitais, o atendimento e conhecimento nos casos de pandemia devem ser universalizados. Já há no Ministério da Saúde uma carteira de vacinação digital, inclusive com QR code, mas só válido por um ano e no Brasil, pois não é escrito em inglês ou francês.

Por fim, não há liberdade individual, nos casos da vacina, que se sobreponha ao bem estar da comunidade.




COVID-19 e a utilização de vacinas fora do SUS.

O Brasil é um dos países do mundo com melhor estrutura na área de vacinação, para tanto, o Programa Nacional de Imunização existe, de forma estruturada, desde 1973, anterior mesmo ao surgimento do SUS, que possui em sua estrutura a possibilidade de prestação de serviços por sistemas privados (Art. 22. Lei 8080/1990) desde que observem os preceitos éticos do mesmo. Esse artigo é importante para entender as propostas de compra de vacinas para COVID-19 veiculadas pela mídia em Janeiro de 2021, uma proposta da Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas e outra de um grupo empresarial.

A ABCVAC apresentou uma proposta de 5 milhões de doses que seriam adquiridas de uma empresa indiana e alegou que sua proposta é adequada, visto que, em outras campanhas de vacinação elas participam vacinando pessoas fora do âmbito do SUS. Embora a empresa indiana ainda não tenha disponibilizado os resultados em fase 3, a ANVISA já acenou com a possibilidade de flexibilização para o caso da pandemia em outra vacina. Já os empresários comprariam da empresa AstraZeneca um mínimo de 11 milhões de doses e doariam para o SUS metade das doses adquiridas. O que obviamente, por uma questão semântica, não pode ser chamada de doação, posto que é condicionada, então, seria uma troca.

A AstraZeneca e o fundo, citado como sendo o investidor que iria vender a sua cota de vacinas, desmentiram publicamente a possibilidade desta transação. A AstraZeneca informou que na atual situação estaria vendendo vacinas apenas para governos ou organizações multilaterais. Vale lembrar que, naquele mesmo período, a empresa farmacêutica estava sendo pressionada pela Europa para cumprir os prazos de entrega de compras já contratadas.

Ambas as propostas visavam atender a uma demanda semelhante: vacinar trabalhadores de setores privados visando a sua imunização para garantir a continuidade das atividades econômicas. Na proposta dos empresários havia também proposta de estender esta vacinação também aos familiares. O governo federal manifestou-se afirmando que o PNI seria capaz de suprir a demanda e que não autorizaria compra de vacinas por empresas privadas. Entretanto, uma semana após o governo mudou de opinião chegando a entrar em contato com a empresa AstraZeneca através de carta manifestando apoio a proposta de compra privada.

Alguns empresários, que haviam sido citados como membros deste grupo, desmentiram que estavam interessados em vacinar apenas seus funcionários. Afirmaram que apenas fariam uma compra privada se todas as doses fossem doadas ao SUS e que não aceitariam a quebra das prioridades estabelecidas no PNI.. Em uma pesquisa tornada pública em 05 de fevereiro com 2500 pessoas, 60% das pessoas com renda maior que 10 salários mínimos aceitou a vacinação paralela ao SUS.

Inúmeros outros grupos de profissionais também se manifestaram no sentido de conseguirem antecipar a sua vacinação fora dos critérios estabelecidos pelo PNI. Em algumas propostas esta antecipação seria estendida também aos seus familiares. Em algumas destas propostas havia inclusive o custo por pessoa, que seria de R$800,00. Em outros grupos, houve a solicitação de liberação de vacinas do SUS por critérios não estabelecidos no PNI.

Houve uma demanda do próprio Hospital Sírio Libanês ao seu Comitê de Bioética sobre o assunto e o mesmo manifestou-se em 29 de janeiro de 2021 no sentido de que a proposta era inadequada. “A compra e distribuição de doses de vacina pela iniciativa privada, gerando a vacinação de indivíduos fora dos grupos prioritários que mais se beneficiam, fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva, ferindo não só os próprios fundamentos do SUS, mas também a própria lógica que gera o benefício de uma campanha de vacinação”. Em situações de escassez de recursos, os critérios de alocação devem ser claros e discutidos com toda a comunidade, não apenas por setores específicos. Todas as pessoas devem ter a sua dignidade preservada. É um critério que une a todos, sem distinção.

Na atual situação mundial de pandemia, com grande de escassez de recursos, que irá perdurar por um longo período, permitir uma ação paralela, e não complementar seria quebrar esta questão da equidade.

O PNI estabeleceu critérios de priorização para o recebimento de vacinas. Esta deve ser a estratégia a ser seguida.



Profissionais da saúde desistem da profissão na pandemia.



Prescrever medicação à luz das categorias morais de ação A medicina jamais pode se considerar alienada da sociedade e deve compreender que age de acordo com os preceitos que regulam ideologicamente as relações humanas. Uma delas são as categorias morais de ação. Em resumo, temos as seguintes categorias morais de ação: 1 - obrigatórias; 2- proibidas; 3 - indiferente; 4 - suprarrogação. Inicialmente as duas primeiras faziam parte da Teoria Moral Divalente que utliziava apenas as duas categorias, sendo as ações obrigatórias aquelas que o individuo que realiza merece aprovação por fazê-lo (dentro das crenças de determinado grupo ou sociedade, como não poderia deixar de ser em uma categoria moral) e uma censura por não realizar a ação. As proibidas possuem uma perspectiva inversa. Essa visão maniqueísta foi colocada de lado com o surgimento da Teoria Moral Trivalente, que introduz o conceito de ação indiferente, que não é aprovada ou censurada. Não geraria consequências morais. Atualmente ainda temos a categoria de suprarrogação, que é um termo criado para explicar ações que ficam entre a obrigação ou proibição e a permissão, é um anglicanismo, derivado de supererrogation, algo além da noção de dever.Para deixar claro seria algo como uma conduta recomendável, ou seja, merece elogios, mas se não for realizada não tem consequência, também podemos pensar como uma conduta desencorajável, que seria o oposto. Não precisamos de muito para entendermos que a conduta de diversos profissionais e, até não profissionais da saúde, durante a pandemia encontra-se em forte debate social, muitas vezes sem a devida reflexão, levando-se em conta apenas critérios deontológicos. Reforçando que não há questão ética em decisões deontológicas, pois a ética não prescreve uma ação, apenas busca justificativas. A moral prescreve regras, deontologia, por isso nossos códigos de conduta começam com: é vedado... A liberação para uso assistencial de uma droga, pela Anvisa por exemplo, permite ao médico prescrever ou não a droga. Faz parte da liberdade profissional prescrever ou não. As sociedades de especialidades ou científicas podem emitir estudos mais aprofundados e orientações sobre o uso da droga, assim, podem recomendar ou desencorajar o uso. As proibições ou obrigações restringem a liberdade do prescritor e devem ser embasadas solidamente por critérios técnicos e possuírem caráter normativo claro. A discussão em torno da utilização de drogas para o tratamento da COVID-19 tem sido enquadrada, por muitas pessoas, como sendo obrigatória ou proibida. A rigor, a prescrição destas substâncias é uma conduta permitida. Mesmo fora da sua liberação pela ANVISA, existe a prerrogativa do médico em prescrever o seu uso como sendo "off label", assumindo a responsabilidade integral pela sua utilização. Deve-se sempre buscar a consolidação por estudos científicos, mas a polarização entre obrigado ou proibido gera confrontos desncessários, devendo ser abandonada a visão maniqueísta. Devemos reconhecer os problemas e solucioná-los com o apoio da ciência e da prudência. REFLEXÕES SOBRE ENCONTROS DE BIOÉTICA DURANTE A PANDEMIA. A mudança de velocidade e a adaptação a nova realidade digital durante a pandemia proporcionou a realização de encontros online com alunos da graduação em medicina (e outras áreas) durante a pandemia, com uma escolha cuidadosa das palavras, posto que algo que nos leva a mais de 75.000 óbitos só em nosso país, não pode proporcionar nada de unicamente positivo, mas é um campo fértil para discussão de assuntos em Bioética. Com essa reflexão estamos convidados a responder a duas perguntas que podem ser reformuladas da seguinte forma: Que relações existem entre bioética e educação? O que a bioética traz ao ensino e o que o ensino à bioética traz? Mesmo tendo perfeita compreensão que jamais poderemos responder questões tão importantes em tão curto texto (mesmo que fosse uma tese), seguiremos um caminho para tentar responder com clareza a essas perguntas embaraçosas e complexas, parece-nos uma prioridade responder a duas perguntas frutíferas que nos perguntamos: O que é bioética e o que isso significa? nós ensinamos? Na verdade, a bioética pode ser entendida como uma reflexão ou atitude ética cujo objetivo é esclarecer ou resolver os problemas éticos levantados pela aplicação de tecnologias biomédicas na vida humana ou pela experiência humana em saúde. Exsitem outras definições, mas essa é a que nos importa no momento. Quanto ao ensino, deve ser entendido no entendimento como um conjunto de maneiras, procedimentos, técnicas para transmitir conhecimento a outra pessoa ou a uma comunidade. Definidos esses dois conceitos, revela-se que a bioética precisa da educação para transmitir aos alunos os principais temas, atitudes, práticas, propósitos, desenvolvidos por essa jovem disciplina. O bioeticista buscará nas ferramentas técnicas e metodológicas que o ensino possui: delimitar os objetivos pedagógicos a serem alcançados durante o ensino de bioética, atingir os destinatários do curso (estudantes de medicina, biologia, filosofia, profissionais de saúde, ativistas de direitos humanos ...), levar em conta a multidisciplinaridade e abertura da bioética, sua multidisciplinaridade e suas reflexões. Pelo exposto, afirmamos que entre bioética e ensino, existem relações de colaboração, convívio e composição. O bioeticista deve se tornar um "professor" o se quiser que sua missão de educar o aluno em bioética seja alcançada. Concluímos que essa experiência, partilhada em mais de dois meses, de forma semanal, engrandeceu muito o professor que mininstrou e que o interesse dos alunos pelo tema existe, basta acender a fabulha das discussões. As discussões ajudam os mesmos a identificar os problemas éticos que surgem nas áreas de saúde, justificar decisões éticas de maneira racional e aplicar princípios éticos de modo a contribuir para a melhoria da qualidade da assistência à saúde. A bioética requer um sistema educacional eficiente que leve em conta esse novo conhecimento, podendo as ferramentas digitais contribuirem de maneira muito forte para isso. A URGÊNCIA DA PANDEMIA NÃO JUSTIFICA VIOLAR REGRAS DA MEDICINA E DA CIÊNCIA Em muitos países do planeta, a pandemia de Covid-19 continua matando milhares, e muitos vivem confinados para dar tempo à medicina e, principalmente para que o acesso a recursos escassos seja feito de maneira ordenada. Muitos defendem, que pelo caráter de urgência, a pandemia demanda a suspensão das regras usuais da medicina e da ciência. Qualquer profissional da saúde envolvido no atendimento de urgência e emergência dirá exatamente o oposto: nesses casos é urgente que tenhamos de nos apegar a protocolos para evitar que a situação piore. Além dessa metáfora podemos usar outros argumentos para demonstrar que não podemos agir abrindo mão de regras e protocolos científicos, ao menos 3 argumentos se destacam - científicos, éticos e pragmáticos. Cientificamente, um ensaio clínico visa identificar uma ligação de causa e efeito, geralmente entre um tratamento potencial e uma patologia. Em um estudo observacional, efeitos positivos ou negativos são observados em um determinado grupo de pacientes. Mas isso não é suficiente para estabelecer a eficácia do tratamento para essa patologia. Também deve ser demonstrado que o efeito não resulta de outras causas: sistema imunológico, idade, sexo, nutrição do paciente, etc. Para isso, devemos comparar o efeito obtido no grupo teste com o observado em um grupo controle sem diferença significativa. Para fazer isso, uma solução é formar os grupos, desenhando seus membros aleatoriamente. Isso aumenta a probabilidade de que a distribuição de várias características de seus membros (como sexo, idade, estilo de vida etc.) seja idêntica. Quanto maior a probabilidade, maiores os grupos. Dessa maneira, se uma diferença for observada entre os dois grupos, ela pode ser atribuída mais certamente ao tratamento do que a outro fator. Essa abordagem é chamada "randomização" (do inglês "random") Sem ser a única fonte possível de evidência, ensaios clínicos randomizados são particularmente úteis quando as características individuais têm um impacto amplamente variável na eficácia de um tratamento testado. Ensaios clínicos randomizados têm obviamente escopo limitado. Eles reduzem a incerteza sem removê-la e podem ser equivocados; mas esses riscos são extremamente mais elevados na ausência de um grupo de controle. Mesmo que sugira, ao evitarmos qualquer droga sem os devidos cuidados metodológicos de pesquisa, que estamos parados, um dos pilares da ética médica é: Primum non nocere, ou seja, se não pode ajudar, não piore. Esperar é agir e potencialmente proteger. Por fim, lembre-se de que, na ausência de dados de suporte, a convicção individual de um cientista em relação à eficácia de seu tratamento não é um indicador confiável, científico ou ético. Tentar qualquer tratamento potencial para "tentar alguma coisa" é uma loteria: seus efeitos colaterais, sempre incertos, podem ser maiores que seus benefícios. A preferência por ensaios rápidos, mas inconclusivos, atrasará a formação de um consenso justificado e a adoção de medidas mais firmemente estabelecidas. Em caso de profunda incerteza, quando ignoramos as probabilidades das conseqüências associadas a uma patologia, parece necessário ter cautela. Um princípio de precaução só pode ditar medidas com benefícios duvidosos quando elas são baratas em termos de saúde (por exemplo, a generalização do uso de máscaras) e pouco prováveis de promoverem efeitos colaterais graves. Nossas intuições às vezes enganosas sobre esse assunto vêm da esperança do que é chamado de "bala mágica": um tratamento que atinge perfeitamente a patologia sem efeitos colaterais. No entanto, as balas mágicas são extremamente raras na medicina, e seu desenvolvimento geralmente é lento. Sua expectativa restringe o debate público, obscurecendo tanto as vantagens do método científico quanto a existência de medidas menos espetaculares, porém preciosas. Porque o uso de testes rigorosos é cientificamente, ética e praticamente justificável, e até urgentemente necessário. COVID-19 e Integridade na Pesquisa José Roberto Goldim A integridade na pesquisa tem sido uma preocupação crescente entre os cientistas e na própria sociedade. No início das discussões a denominação utilizada era de desonestidade na ciência. O Comitê Dinamarquês sobre Desonestidade Científica foi pioneiro em discutir este tema. Em 2010 foram divulgados os Princípios para a Integridade na Pesquisa que propõem que haja honestidade em todos os aspectos da pesquisa: responsabilidade social na condução da pesquisa; polidez e justiça no trabalho com outras pessoas; e boa gestão da pesquisa em benefício de terceiros. A pandemia da COVID-19 já gerou a publicação de 19571 artigos e outras formas de publicações em revistas científicas, catalogados na base PUBMED até 06/06/2020. Estas publicações abrangem um amplo espectro de temas relacionados a esta situação em que toda a população mundial se viu envolvida. Esta situação de emergêcia sanitária tem aberto a possibilidade de publicar resultados muito mais rapidamente que o ususal. A publicação de artigos, sem uma revisão adequada, cartas aos editores, notas prévias e "pre-prints", alem de divulgação direta na imprensa leiga ou pela internet, tem gerado uma quase saturação de dados, porém com poucas informações adequadamente incorporadas ao conhecimento das pessoas. Estas publicações, em meio a incerteza causada pela nova pandemia, deveriam estar gerando um conjunto de conhecimentos que permitam melhorar a compreensão do que está acontecendo e de planejar melhores métodos de diagnóstico, tratamento e prevenção. além do efeito do volume de publicações, também tem o problema da qualidade. Muitas publicações divulgadas já foram retratadas, ou que mereceram nota de preocupação de que podem ser inadequadas, ou foram corrigidas em função de erros ou de fraudes detectadas. O banco de dados da Retraction Watch já tem inúmeros registros de estudos que foram denunciados ou assumidos pelos próprios autores como tendo algum problema que invalida a utilização de seus resultados. Estes 17 registros, até o dia de 06/06/2020, envolvem 10 publicações, pois alguns deles têm mais de um registro, seja por ocorreção, nota de preocupação ou retratação. Dois artigos se destacam, pois ambos envolvem estudos sobre o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para o tratamento da COVID-19, um a favor e outro contra. Fazendo uma análise apenas destes dois artigos é possível identificar inúmeras situações que atentam contra os princípios da integridade na pesquisa, especialmente em termos de honestidade científica e responsabilidade social envolvidos. O primeiro artigo, elaborado por um grupo de pesquisadores da França e do Vietnam, propunha que este tratamento era eficaz. Ele foi publicado em 20 de março e teve duas notas de preocupação sobre a sua validade, uma em 04 de abril e outra em 11 de abril. Uma delas questionava o estudo como um todo, em termos de padrões mínimos para permitir uma publicação científica válida. O segundo artigo, com resultados contrários à utilização deste mesmo tratamento, foi elaborado por um grupo de pesquisadores liderados por Mandeep Mehra, vinculados a importantes universidades dos Estados Unidos e da Suíça. Este artigo foi publicado em 22 de maio, corrigido em 30 de maio, recebeu uma nota de preocupação com os seus resultados em 03 de junho e foi retratado em 04 de junho. Vale ressaltar que este artigo foi publicado por uma das mais respeitadas revistas científicas na área médica, a revista Lancet. É importante lembrar que um outro artigo, publicado por Andrew Wakefield e colaboradores, nesta mesma revista, em 1998, teve uma enorme repercussão ao associar a vacina MMR e a ocorrência de autismo. Este artigo foi retratado parcialmente em 2004 e integralmente em 2010. Infelizmente, até hoje, este artigo é ainda citado como uma referência contra os programas de vacinação. As informações de mais de 96000 pacientes, atendidos em 671 hospitais ao redor do mundo, contidos na base da dados da empresa Surgisphere, é que foram analisados no artigo publicado na revista Lancet sobre o uso de cloroquina. Logo após a sua publicação, começaram a surgir alguns questionamentos sobre a base de dados utilizada. Foi solicitada uma auditoria independente às informações, que foi negada pela Surgisphere. Algumas inconsistências foram relatadas, especialmente com relação aos dados dos hospitais australianos. Houve um pedido de correção dos dados, por parte dos próprios autores, mas esta correção não foi motivo para a retratação do artigo como um todo. Logo após a retratação do artigo da revista Lancet, o mesmo grupo de pesquisadores teve outro artigo retratado pelo New England Journal of Medicine. Este artigo também utilizou os mesmos dados da empresa Surgisphere. Esta empresa de análise de dados está sendo objeto de inúmeros questionamentos sobre as suas práticas e sobre a própria qualidade das informações que tem disponibilizado para estudos. A utilização de bases de dados agregados e anonimizados, como a fornecida pela Surgisphere, sem a devida análise de confiabilidade dos mesmos, pode gerar análises infundadas. Vale lembrar que vários hospitais, potencialmente envolvidos no compartilhamento de dados com a Sugisphere, negaram qualquer vínculo que esta empresa. Caso se confirmem as suspeitas a respeito da confiabilidade da base de dados utilizada, o autor dos artigos, associado a esta empresa, poderá ser acusado de fraude científica, em função dos dados serem fictícios. Os demais autores e revisores dos artigos poderão ser acusados de negligência na condução e publicação destas pesquisas, A possibilidade de que tenha havido uma falha na avaliação da veracidade dos dados foi o motivo pelo qual três dos autores do artigo da revista Lancet solicitaram a revisão da própria base de dados. Vale lembrar que este cuidado não foi tomado quando da utilização desta base de dados. Os editores e revisores também não tiveram o cuidado de solicitar o acesso à base de dados utilizada, ou, no mínimo, às características de coleta e consolidação das informações ali contidas. Este é um exemplo de decisão baseada na arrogância tecnológica, pois a utilização de conceitos como Big Data, Machine Learning e Data Analytics, dá uma aparente sensação de integridade e robustez a uma base de dados sem consistência. Os demais artigos, pre-prints e correspondências retratados envolvem inúmeras outras situações de saúde associadas à COVID-19, tais como questões associadas a gestação, sexualidade, uso de vitamina D, mortalidade cardíaca, medicina legal, hemodiálise e outras drogas. As situações descritas são de alto risco, individual e coletivo, pois podem influenciar decisões de atenção à saúde individual como de políticas públicas. A leitura acrítica dos artigos científicos é sempre perigosa. O uso do argumento de autoridade aplicao aos autores, às instituições e aos periódicos é muito arriscado. Vários autores renomados, instituições reconhecidas pela sua excelência e periódicos de alto impacto, tiveram pesquisas corrigidas ou retiradas do conjunto dos conhecimentos tidos como válidos. Os danos gerados pela geração e divulgação de conhecimentos errados ou falsificados podem ser imediatos ou ocorrer ao longo de vários anos. Para ler mais: Riis P. O Comitê Dinamarquês sobre Desonestidade Científica. Rev Bioética. 1998;6(2):156–7. Noorden R Van. The trouble with retractions. Nature. 2011 Nov;478:26–8.Fang FC, Steen RG, Casadevall A. Misconduct accounts for the majority of retracted scientific publications. Proc Natl Acad Sci. 2012;109(42):17028–33. Academia Brasileira de Ciências. Rigor e Integridade na Condução da Pesquisa Científica. 1ed. Rio de Janeiro, ABC; 2013.Goldim JR. Fraude e Integridade na Ciência. ComCiência (UNICAMP). 2013;147.A BIOÉTICA NA PANDEMIA DE COVID-19 A situação excepcional causada pela pandemia de Covid-19 levanta questões éticas difíceis na tomada de decisões médicas, políticas e sociais que poderiam ser ajudadas com o conhecimento dos bioeticistas que são especialistas treinados na análise de questões éticas que afetam a área da saúde de forma individual ou coletiva, pública ou privada. Nesses tempos de crises a aplicação do conhecimento bioético contribui, dentre outras coisas, para a tomada de decisão em situações que incluem alocação de recursos e quarentenas, por exemplo. Podem orientar e criticar as políticas públicas e governamentais, quando necessário e ajudar jornalistas e leigos a entenderem de forma mais clara as justificativas éticas para as medidas adotadas. Entretanto, embora a Bioética tenha um longo caminho percorrido e, no Brasil tenhamos grandes bioeticistas, poucas vezes os vemos sendo consultados sobre assuntos tão importantes. Grandes conhecedores da aplicação prática das questões Éticas, os bioeticistas podem ter formações diversas (filosofia, ciências sociais, direito, medicina, enfermagem). A interdisciplinaridade é um dos pilares desse campo e, portanto, poderiam muito contribuir na amparo as decisões que devem ser tomadas, porém, na maioria das vezes, não são consultados ou não possuem papel em questões como pesquisas médicas com drogas ou seres humanos, divulgação de dados médicos, suporte ao paciente e família na hora do óbito e etc. Eles trabalham em muitas organizações, assumindo várias funções. Alguns são professores-pesquisadores da universidade: ensinam, entre outras coisas, ética médica, ética e ética em pesquisa a futuros profissionais e gerentes de saúde, bem como a estudantes de bioética. O professor de bioética pode comentar sobre os eventos atuais na mídia, participar de comitês consultivos e fazer parte de grupos de especialistas para esclarecer questões complexas ou ajudar a desenvolver diretrizes. Às vezes, uma salvaguarda, às vezes um mediador, às vezes um crítico, o bioeticista assume vários papéis cujo ponto comum é garantir a manutenção de valores e princípios éticos de nossas sociedades, como responsabilidade, justiça, beneficência, solidariedade, transparência, respeito pela autonomia e dignidade humana… PAPEL DE REDUÇÃO DO ÔNUS DAS DECISÕES Os bioeticistas desempenham um papel indispensável na atual crise: eles devem reduzir o ônus para os clínicos e tomadores de decisão ao tomarem decisões difíceis e sem precedentes. Eles devem estar presentes para apoiar os tomadores de decisão, não substituí-los, garantindo que eles tomem as melhores decisões possíveis nas situações que enfrentam. Atualmente, os bioeticistas estão lidando com questões de alocação de recursos (máscaras, respiradores, camas de terapia intensiva). Mas eles também intervêm no apoio de gerentes e cuidadores em um contexto de crise que, por exemplo, deve determinar os meios mais respeitosos para lidar com um número esmagador de mortes de idosos: onde armazenar os corpos e como fornecer tratamento digno do falecido e de suas famílias? PAPEL NAS PESQUISAS CIENTÍFICAS Os bioeticistas também garantem a proteção dos participantes e a boa condução da pesquisa como consultores nos comitês de ética em pesquisa. No entanto, com a pandemia de Covid-19, a emergência se depara com as regras usuais de pesquisa. O mundo precisa urgentemente de tratamento e vacina, mas a pesquisa clínica nesse contexto levanta uma infinidade de questões éticas. A Bioética poderia, pelo seu largo caminho já trilhado, ajudar em todas essas e em diversas outras questões que surgem em meio a epidemia e a incerteza com nosso futuro, que filosoficamente falando é sempre incerto e em aberto, as reflexões éticas e bioéticas poderiam nos ajudar na escolha de que futuro queremos após a epidemia. https://www.youtube.com/channel/UCDnfl1RhDZSJcT7rUBPzFbw?view_as=subscriber Medidas para informação, educação e comunicação durante a pandemia Para atingir o compromisso que todo governo e liderança deve ter com a sociedade, sobretudo, em tempos de pandemia, torna-se necessário que métodos eficazes de comunicação com a população sejam implementados, educar para as diversas demandas que surgirão com o advento da doença em larga escala. Os princípios da comunicação no caso de um surto de pandemia são: 1 - Confiar na informação e transparência; 2 - Comunicação rápida com a população; 3 - Diálogo com o público e 4 - Planejamento. O planejamento antecipado permitirá desenvolver estratégias que atinjam toda a população e sejam apropriadas linguística e culturalmente. Os diferentes tipos de informações abaixo devem ser comunicados durante todos os períodos, incluindo durante o período interpandêmico: • iniciativas empreendidas para permitir que cidadãos ou comunidades participem do desenvolvimento de políticas para responder a uma pandemia; • a natureza e extensão da ameaça e riscos associados e a disseminação da pandemia; • as medidas que são tomadas para reagir à pandemia, incluindo novas políticas adotadas e suas justificativas; • cientificamente fundamentado, viável e compreensível para que as pessoas possam adotar para se proteger e / ou outros de infecções. Os critérios e procedimentos de tomada de decisão que serão usados ​​durante uma pandemia devem ser comunicados ao público o mais rápido possível. É inevitável que algumas dessas informações sejam incertas e que a incerteza também deva ser tornada pública de maneira clara e em linguagem que não seja alarmista. As informações disponíveis mudarão continuamente ao longo da pandemia e exigirão ajustes nas estratégias de resposta com base em uma avaliação contínua dos riscos e benefícios potenciais das intervenções. Esses ajustes, e as razões para eles, devem ser comunicados ao público e sempre baseados no conhecimento e na melhor metodologia científica e não em opiniões ou interesses financeiros e políticos. Para ler mais: https://www.who.int/ethics/WHO_CDS_EPR_GIP_2007.2_fre.pdf ESTRATÉGIAS INDIVIDUAIS E COLETIVAS PARA O COMBATE DA PANDEMIA Em uma democracia todos somos responsáveis por qualquer decisão, por isso é um sistema tão pesado. Não podemos transmitir nossa responsabilidade. Para tanto, precisamos agir e a pergunta seguinte é: como agir? Sem a pretensão de ser um guia, algumas considerações bioéticas são importantes, podem parecer óbvias, mas em tempos sombrios como os nossos, repetir o óbvio é necessário. 1. Apoiar plenamente as ações das Nações Unidas e, em particular, o papel de liderança da OMS, 2. Reafirmando o papel da UNESCO no campo da bioética e da mobilização contra a pandemia, 3. Enfatizando os princípios de responsabilidade social, solidariedade, dignidade da pessoa, igualdade, justiça, não discriminação e outros princípios relevantes proclamados pela Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. , 4. Definir e implementar estratégias para combater a epidemia envolvendo populações locais e levando em consideração o contexto específico dos países envolvidos, em sua dimensão ética, social e cultural; 5. Reforçar as capacidades dos sistemas de saúde dos Estados afetados por essa pandemia, para que financeiramente, materialmente e do ponto de vista organizacional e humano, possam enfrentá-lo, impedir sua extensão e controlá-lo ao longo do tempo, 6. Incentivar, de acordo com a gravidade desta crise da saúde, os esforços realizados no campo da pesquisa científica, 7. Incentivar os esforços da comunidade científica com o objetivo de desenvolver tratamentos adequados e trabalhar na avaliação de sua eficácia no contexto da governança ética das epidemias, 8. Para esse fim, fortalecer os mecanismos de coordenação entre os pesquisadores. Para ler mais: http://www.unesco.org/new/fr/social-and-human-sciences/themes/bioethics/ QUESTÕES SOBRE EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS EM ÉPOCA DE PANDEMIA Quando falamos sobre evidências científicas, alguns princípios sempre devem ser respeitados para obtermos resultados satisfatórios. 1 – Grupo controle: os pacientes que recebem um novo tratamento são comparados com um conjunto ´controle´ que não recebe, na maior parte das vezes o grupo controle recebe um placebo. 2 – Ser aleatório: a distribuição de pacientes entre os dois grupos, o de controle e o tratado, ocorre de forma aleatória para evitar qualquer influência na seleção que possa alterar o resultado. 3 – Valor estatístico: a conformação dos testes evita confusões devido a desvios, especialmente quando as amostras são pequenas. 4 – Reprodutibilidade: deve ser possível repetir os testes por diferentes profissionais e em diferentes instituições. Todos esses cuidados e princípios foram desenvolvidos para que pudéssemos escapar das “opiniões”, as famosas “doxas” platônicas. Os inconvenientes de se depender da ´opinião clínica´, da famosa ´minha experiência´ foram destacados no livro Efetividade e Eficiência: reflexos causais sobre os serviços de saúde, escrito pelo escocês Archie Cochrane, em 1972, isso quando falamos de medicina já que os fundamentos do pensamento científico obviamente são bem anteriores. Mas o que diz o livro de Cochrane? Basicamente isso: A – GRANDE PARTE das melhorias na saúde pública deve-se a fatores ambientais, como por exemplo NA HIGIENE, do que na melhoria dos tratamentos médicos. B – Os médicos são pressionados pelos próprios pacientes para que lhes sejam receitados medicamentos ou tratamentos, mesmo sem evidência de efetividade. C – O fato de que alguns pacientes se recuperam após algum tratamento não demonstra sua efetividade, pode ter sido por outros fatores. D – Novamente o fato da crença do paciente que ele melhorou com o tratamento não prova efetividade. Cochrane ainda afirmou: “ Duas das mudanças mais surpreendentes durante os últimos vinte anos são o ascenso da ´opinião´ em relação a outros tipos de evidências e a desvalorização da palavra “experimento”. [...] Querem que tudo seja breve, dramático, branco ou preto. Qualquer discussão das evidências é descartada por ser longa demais, entediante e desinteressante.” Os famosos amontoados de coisas escritas. Um exemplo clássico dos perigos do uso de medicação baseada na “ minha opinião” é o da Sanocrisina (composto baseado em outro) para o tratamento da tuberculose. Em 1931, um médico publicou os resultados de um teste com 46 pacientes e declarou que o medicamento era excepcional. Entretanto, não houve grupo controle. No mesmo ano outro trabalho com 24 pacientes divididos em grupos de 12 (grupo controle e divisão aleatória) demonstrou que os 12 pacientes que receberam injeção de água intravenosa tiveram chances claras de sobreviverem por mais tempo. Aquele que não conhece História está fadado a repeti-la. CONFINADOS (CUM FINIS - COM FINITUDE) COVID 19 E VULNERABILIDADE. A epidemia nos trouxe a Alteridade absoluta: a impossibilidade de poder, a morte que não pode ser afastada para um futuro distante, que não pode (ou não poderia) ser negada. O Covid-19 não é, a priori, omais mortal ou virulento dos germes, seu perigo está na sua capacidade de propagação rápida e indistinta que sobrecarrega não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossas crenças e estilos de vida. Nos faz questionair, ou deveria, no mais profundo de nossa existência enquanto espécie as nossas decisões e relações entre nós mesmos e com o planeta. E, quanta ilusão, tínhamos certeza de nossa invencibilidade. Que outro modelo poderia competir com o nosso e com todo o seu poder científico, industrial, econômico e político? No entanto, já tínhamos sido alertados sobre a fraqueza estrutural de nossos edifícios. A emergência ecológica, a crise de 2008, os ataques terroristas, os ataques a computadores, a insurreição dos coletes amarelos, a miséria pululante, as diferenças sociais abissais, as fake news, os golpes midiáticos-judiciais e etc. etc. já haviam revelado a porosidade fundamental de nossos diques e uma certa falta de ar do modelo. Falta de avisos não faltaram, mas a soberba era maior, não imaginávamos um ponto de fragilidade tão fácil de ser atingido, no fim o COVID 19 veio apontar nossa vulnerabilidade, nem sequer aponta um " calcanhar de Aquiles", não é apenas um ponto de nossa estrutura que é vulnerável, somos vulneráveis, essa é a verdade. Esse coronavírus é Davi que ri de Golias, é o homem que aponta o dedo para o rei nu. Não adianta ter histórico de atleta ou guerreiro, não se pode matar um vírus com tiros de revólver. Em apenas alguns meses todas as nossas bravatas derreteram como neve ao sol (embora alguns ainda insistam). O oponente invisível nos levou a nos sitiar. Passamos a ver a nossa própria morte como algo não mais adiável, deveríamos passar a reconhecer a nossa vulnerabilidade, mas também a do Outro, algo que infelizmente parece estar sendo esquecido, não estamos protegendo-nos como sociedade. A morte repentinamente retorna ao pseudo-real de nossas vidas, embriagada com a abundância de crescimento, a suficiência de consumo e a distração despreocupada. É interessante notar a relação semântica entre "confinamento" e a questão da morte (cum-finis, literalmente "com finitude"). Esta morte que há tanto tempo se exilou de nossos quadros de poder, que nosso Logos e poder técnico-científico prometeram ´matar´, aqui está ela, que irrompe todas as noites como uma oração. Essa realidade da morte que anteriormente considerávamos excepcional, distante e abstrata nos alcança concretamente e nos deixa proibidos por nos forçar ao refúgio. Nos força a decisão que sempre pareceu fácil: escolher entre ´nós´ e a nossa sacrossanta economia e nossas maiores liberdades para tentar preservar os mais frágeis, que se no começo pareciam um grupo restrito, foi desvelado pela epidemia que vulneráveis somos todos nós. O planeta renasce e nós perecemos, se isso não é um potente indutor de repensarmos o que se passa com nossos caminhos, não sei o que será mais potente. Chegou a hora de colocarmos em dúvida o plano de desenvolvimento ininterrupto e perguntarmos quais nossas verdadeiras prioridades. PANDEMIA E ÉTICA DA ALTERIDADE Possui extrema importância, em tempos tão sombrios, retornar à questão da Ética da Alteridade, sobretudo, três de seus postulados mais importantes: o reconhecimento do Outro, a Precaução e a Responsabilidade, postulados que se intercruzam nesse momento tão sui generis. Em meio à discussão tão intensa em nosso país entre partidários ou não da pandemia, mesmo que isso seja absurdo em face de tudo que se conhece no mundo inteiro, suponhamos, mesmo que por um momento só, que a mesma possa não existir, valeria apostar nessa possibilidade se a outra possibilidade é da existência com elevado risco de morbi/mortalidade? Não seria hora de levarmos em conta a Precaução? A aposta não deveria ser na nossa proteção? O uso de EPIs torna-se então uma necessidade, bem como, medidas que evitam o contágio e a proliferação da doença. Quando os profissionais da saúde e leigos utilizam materiais de proteção, temos um outro problema que é o de ter o seu rosto, a sua face, pelo menos em parte, encoberta. Tudo isto leva, pelo menos parcialmente, a uma despersonalização. Não recohecer o rosto do Outro, olhar apenas para números frios e não reconhecer fisicamente esse rosto, o que pode causar muita angústia em pacientes e profissionais. Com o pensamento de E. Levinas, que inaugura um humanismo do outro homem, contrário ao humanismo que não distinguiria as pessoas, considerando-as todas como iguais e com os mesmos direitos, o que permitiria apenas um humanismo do eu. Esse humanismo levinasiano é expressão da dignidade do outro, em sua vulnerabilidade e em sua necessidade de relação. È especialmente a face que me dá a possibilidade de reconhecer e ser reconhecido. Ocultar o rosto com máscaras e protetores faciais, é impedir que isto ocorra. É apenas mais alguém que está alí presente, mas que não é passível de ser reconhecido. A idéia de propor a utilização de crachás de grande tamanho possibilita reverter, pelo menos parcialmente, esta situação, desde que mantidas as condições de garantir a segurança dos pacientes e dos profissionais. Ter a possibilidade de escolher pessoalmente uma foto para o crachá é um início de uma relação: é escolher como quer ser reconhecido, ao contrário da maior parte dos documentos com foto oficial.. Esta possibilidade de ter o seu rosto visto novamente, de seu nome ser divulgado e a sua profissão identificada é que estabelece a possibilidade de ser reconhecido e de reconhecer. Alteridade é também se responsabilizar pelo outro e por si mesmo. Não há ordem, código de força superior que me ameace com a prisão ou com o inferno. Essa responsabilidade está além e aquém das imposições legais e dos contratos, quaisquer que sejam eles. É a impossibilidade da indiferença frente à diferença do outro, é a impossibilidade de realizar a síntese da simultaneidade. É baseado nesta relação de corresponsabilidade que surge a justificativa de uma ação tão simples quanto utilizar máscaras faciais em todos os locais públicos. As máscaras usuais não protegem o indivíduo adequadamente, mas impedem, de forma bem efetiva a contaminação dos outros. A não neutralidade perante o outro, expressa pela identificação, pelo reconhecimento, pela proteção recíproca é a resposta mais adequada, é a efetivação da Alteridade na prática diária de cada um de nós. Para ler mais: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2824/1/416405.pdf COVID-19 e as confusões entre Atestado, Declaração e Certidão de Óbito O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde, em função da excepcionalidade da situação gerada pela pandemia da COVID-19, publicaram uma portaria conjunta para permitir o sepultamento sem a necessidade de certidão de óbito. Entre os leigos e, mesmo entre profissionais da saúde, a medida gerou uma série de confusões tais como: poderemos sepultar sem atestado de óbito? A imprensa acabou por repercutir (o que não deveria) essas dúvidas e confusões Vamos tentar esclarecer: O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina usam de forma indistinta as denominações Atestado de Óbito e Declaração de Óbito. Em várias resoluções, pareceres e publicações estas duas denominações são utilizadas. No Código de Ética Médica é utilizada apenas a expressão Declaração de Óbito, mas é dito que o médico deve atestar o óbito do paciente. Atestado de Óbito era a denominação utilizada antes da década de 1970. O documento era formalmente denominado de Atestado Médico de Causa de Morte. Este nome foi alterado para Declaração de Óbito em 1976, mas a utilização da expressão Atestado de Óbito permanece até os dias de hoje. (https://bioeticacomplexa.blogspot.com/ acessado em 11 de Maio de 2020) A denominação correta para o documento que o médico deve fornecer com a finalidade de documentar a morte de um paciente é Declaração de Óbito. Ela possui, além da função epidemiológica, uma função legal. Este mesmo documento, segundo a Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/1973, serve para que os Cartórios de Registro Civil possam fornecer a Certidão de Óbito, que é indispensável para as formalidades legais do sepultamento. A Portaria conjunta do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Saúde apenas dispensou a necessidade da Certidão de Óbito para facilitar a realização de sepultamentos, evitando, face a pandemia, a demora para o sepultamento. A própria Portaria garante que todos os direitos ficam preservados e que os familiares terão um prazo de até 60 dias para efetivar o registro em cartório e terem acesso à Certidão de Óbito. Outra confusão que ocorreu com a interpretação superficial do texto da Portaria foi a questão do diagnóstico da causa do óbito. O Parágrafo Único do Artigo 3o da Portaria estabeleceu que "havendo morte por doença respiratória suspeita para Covid-19, não confirmada por exames ao tempo do óbito, deverá ser consignado na Declaração de Óbito a descrição da causa mortis ou como“provável para Covid-19” ou “suspeito para Covid-19”. Esta recomendação tem como objetivo evitar que a ausência de um resultado de um teste diagnóstico confirmatório para a COVID-19 não tivesse, pelo menos a sua caracterização como uma suspeita diagnóstica. Este dado é de grande importância para o monitoramento epidemiológico da Pandemia.Para ler maisBrasil. Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde. Portaria conjunta no 1, de 30 de março de 2020. [Internet]. Brasilia: CNJ; 2020. TEXTO: A DESTRUIÇÃO DOS MITOS E A ASCENSÃO DO FANATISMO. A destruição dos mitos e a ascensão do fanatismo. O fanático, como definido no Aurélio, é aquele que "acredita ser animado por uma religião ou por extensão, por qualquer tipo de doutrina, causa ou pessoa, de fé intratável e zelo cego e agressivo ”. Ele é descrito como fervoroso e apaixonado, raivoso, intolerante, sectário, entusiasta, frenético e absoluto. E, acima de tudo, definimos como fora do limite, excedendo o limite. O limite foi excedido quando um deputado (representante do ideal democrático), em pleno congresso nacional homenageia um torturador condenado, as favas os revisionistas rasos da História, e sai de lá livre com o argumento de liberdade de expressão, ora, esse argumento só pode ser válido na boca daqueles que defendem a democracia, não na dos que defendem o fim da mesma. Não há como dialogar com quem propõe o fim da possibilidade de diálogo. O fanatismo é a ideia de que o que se trata, o que chamamos de radicalização, não surge de uma fé banal, mas de uma cegueira da fé na qual o diálogo e o pressuposto da própria democracia são prejudicados. Resta, através da dimensão clínica que a psicanálise pode trazer, desvendar os meandros. O que a psicanálise introduz é a questão da identificação. Para Dulce (2008), tomando como ponto de apoio os textos sociais de Freud e as contribuições da teoria crítica da sociedade, os indivíduos, em vez de estarem identificando- se entre si, estão se identificando com a totalidade social irracional, com Mitos, na acepção mais profunda da palavra e que, no fim, demonstram apenas aquilo que são: mitos. Para entendermos bem a função do mito, devemos recorrer também à filosofia, qual seria essa função? A função do mito não é, primordialmente, explicar a realidade, mas acomodar e tranquilizar o homem em um mundo assustador. Para o filósofo romeno Mircea Eliade (2002) uma das funções do mito é fixar modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. O mito possibilita ao homem um conhecimento anterior das coisas, que aquilo ao qual ele se empenha já foi feito por alguém, excluindo toda e qualquer dúvida, ou seja, nos exime (embora fazer isso já seja uma forma de pensar e se posicionar) de pensar e nos posicionarmos, alguém já faz isso por nós: o Mito. Basta apenas que se siga o seu exemplo. Essa visão de mundo permite ao homem das sociedades onde o mito é algo presente e vivo uma visão aberta do mundo, mesmo quando este lhe parece fragmentado e misterioso. Torna-se fácil entender então o motivo pelo qual quanto mais o Mito é desvelado, quanto mais o ´rei está nu´, mais fanático se torna seu adorador, pois a desconstrução desse mundo de segurança, mesmo que fantasioso, assusta e muito aqueles que desprovidos da capacidade de diálogo e de percepção da alteridade necessitam agarrar-se em falsos construtos sociais que mostram um mundo perfeito de acordo com suas próprias crenças. Quando confrontados com a realidade tendem a responder sempre de uma maneira padronizada: agressividade dificuldade de escuta expressões de ódio e preconceito estreiteza mental pensamento dicotômico, tendência em ver o diferente como inimigo. Como dizia Nietzsche: “A convicção é mais inimiga da verdade que a mentira.” TEXTO PARECER 4/2020 CFM - USO CLOROQUINA NO COVID – 19. ALGUMAS REFLEXÕES. Ensaios clínicos de medicamentos (pesquisas com novas drogas) Para muitas pessoas, mesmo profissionais da área da saúde, falar sobre pesquisa em saúde é como falar sobre pesquisa farmacêutica. Embora não seja a única forma de pesquisa clínica, os ensaios clínicos de medicamentos ocupam um lugar importante na pesquisa médicas, sobretudo, pelas vultuosas cifras envolvidas e pelos potenciais problemas éticos, que vão desde o teste em animais como em populações humanas socialmente frágeis, bem como, lançamento precoce por pressão mercadológica e sem os devidos testes totalmente realizados e que pudessem garantir um mínimo de eficácia e tolerabilidade, para tanto, lançamos mão dos ensaios clínicos. Os ensaios clínicos são usados ​​para fornecer evidências científicas para a eficácia, segurança e qualidade de um medicamento para humanos. Eles geralmente têm quatro fases (após já terem completado diversos outros trâmites burocráticos): A Fase I, frequentemente referida como estudos humanos iniciais, concentra-se na avaliação da segurança do novo medicamento com base na dosagem. Os testes geralmente são realizados em um pequeno grupo de voluntários saudáveis, geralmente compensados ​​por sua participação no estudo. Os ensaios de fase I podem ser conduzidos com pacientes quando não é eticamente apropriado conduzi-los com voluntários saudáveis, por exemplo, quando a toxicidade do produto é notoriamente reconhecida; após a confirmação da tolerância e segurança da nova substância na fase I, passamos para a fase seguinte. A Fase II, que é usada para avaliar a eficácia e a toxicidade a curto prazo desse medicamento. Os sujeitos da pesquisa geralmente são divididos em dois grupos, formados aleatoriamente para serem o mais próximo possível em termos de idade, sexo e histórico médico. Um grupo recebe o medicamento sob investigação, enquanto o segundo, chamado grupo controle, toma um remédio conhecido ou um placebo. Frequentemente, são testes duplo-cegos, ou seja, o paciente não sabe qual tratamento está recebendo e nem o médico sabe qual grupo está recebendo a medicação e qual recebe o placebo. Esse método garante que os dados coletados não sejam influenciados pelo viés do paciente ou do especialista clínico; Os ensaios de fase III permitem que os pesquisadores compreendam melhor a eficácia e os benefícios do medicamento e as reações negativas que ele pode causar. Nesta fase, a maioria dos estudos é realizada aleatoriamente e sem conhecimento, e dura vários anos. O medicamento que passou com sucesso na fase III, normalmente, se aprovado pelas agências reguladoras, pode ser comercializado. O objetivo dos ensaios clínicos de fase III e IV é melhorar as chances de sobrevivência ou a qualidade de vida de indivíduos que sofrem de doenças ou condições específicas; Estudos de fase IV, também chamados de estudos de vigilância pós-comercialização, são realizados após a entrada do medicamento no circuito comercial. Eles se relacionam com a indicação aprovada e são importantes para otimizar o uso do medicamento. Acima de tudo, eles nos permitem examinar a toxicidade e eficácia a longo prazo dos medicamentos vendidos recentemente. Uso off label ou compassivo? Situações como a que vivemos podem levar ao uso de drogas e medicamentos sem liberação específica e sem levar em consideração os critérios de pesquisa acima mencionados. Temos dois tipos de situação: o Uso compassivo de drogas e o Uso off label de medicamentos. O primeiro exemplo consiste no uso de drogas ainda não registradas em nenhuma agência reguladora e que é disponibilizado pelo fabricante para uso assistencial. Isso denomina-se uso Compassivo, por se tratar de droga ainda experimental e sem qualquer registro. Justifica-se como excepcionalidade, para casos individuais, em função de julgamento médico de potencial benefício da droga e na ausência de uma terapia medicamentosa eficaz. O exemplo é o uso do Redensevir para pacientes com COVID-19. Outra possibilidade é a utilização de produtos liberados para usos diversos com indicações específicas, o exemplo mais citado é a cloroquina que de acordo com a bula do produto elaborada pela FioCruz: “A cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária causado por Plasmodium vivax, P. ovale e P. malarie. Também está indicada no tratamento de amebíase hepática e, em conjunto com outros fármacos, tem eficácia clínica na artrite reumatoide, no lúpus eritematoso sistêmico e lúpus discoide, na sarcoidose e nas doenças de fotossensibilidade como a porfiria cutânea tardia e as erupções polimórficas graves desencadeadas pela luz". O uso da droga citada ( ou do similar Hidroxicloroquina) fora desta indicação consiste no que se chama uso off label. O Uso Off Label é realizado por um médico assistente tendo em vista o benefício que este medicamento, fora de suas prescrições autorizadas, pode acarretar ao seu paciente assistencial. Este benefício deve ser cotejado contra os riscos associados ao seu uso, que já estão descritos na literatura médica e no próprio processo de liberação do produto. Com relação ao uso da cloroquina, alguns estudos iniciais (sem os devidos cuidados metodológicos acima mencionados) pareciam mostrar um efeito promissor. Sobretudo o estudo francês do professor Raouldt, no entanto, no início de abril de 2020, a Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana (ISAC) divulgou um posicionamento formal considerando que este último artigo foi considerado como não tendo valor científico mínimo para ser publicado. Este posicionamento não teve uma grande repercussão na imprensa nem no meio científico. O Conselho Federal de Medicina divulgou, em 23 de abril de 2020, o Parecer 4/2020 sobre o tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina. Neste documento, o Conselho Federal de Medicina propõe que estes medicamentos podem ser utilizados em três diferentes cenários. Os dois primeiros se referem a pacientes com sintomas leves ou com sintomas importantes compatíveis com o quadro clínico de COVID-19. Em ambas situações, o Parecer ressalta que "não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". Na terceira situação, quando o cenário é descrito como sendo associado a "pacientes críticos recebendo cuidados intensivos", a utilização das drogas é caracterizada como sendo Uso Compassivo. Neste mesmo parágrafo existe a observação de que "é difícil imaginar que (...) possam ter um efeito clinicamente importante". O Parecer continua afirmando que o médico deve "oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento". Na conclusão do Parecer, o CFM propõe, de forma antecipada, que "não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19". Embora, na minha opinião, confuso, o parecer ressalta que não há "nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". O CFM apenas estabelece que, em caso de prescrição destes medicamentos por um médico, o mesmo não poderá ser questionado desde o ponto de vista ético profissional ( o que acho pouco provável que não venha a ocorrer em alguns casos por situações que não cabem questionar aqui). No mesmo documento, a caracterização como Uso Compassivo é equivocada, pois os dois medicamentos já estão liberados pela ANVISA, só que para outro tipo de indicação. Desta forma, a sua utilização é como uma prescrição Off Label. A maior diferença entre o Uso Compassivo e o Uso Off Label é o volume de conhecimento associado aos riscos com o uso da droga. O Uso Off Label, por utilizar um produto já disponível comercialmente, tem um grande volume de dados sobre segurança e tolerabilidade em outros tipos de doenças. Para ler mais Goldim JR. O uso de drogas ainda experimentais em assistência: extensão de pesquisa, uso compassivo e acesso expandido. Rev Panam Salud Pública / Pan Am J Public Heal. 2008;23:198–206. Kolata G. At the Center of a Storm: The Search for a Proven Coronavirus Treatment. New York Times [Internet]. 2020. Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Farmanguinhos Cloroquina (Bula do profissional de saúde) [Internet]. BulasMed. 2020. Colson P, Rolain JM, Lagier JC, Brouqui P, Raoult D. Chloroquine and hydroxychloroquine as available weapons to fight COVID-19. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020;(xxxx):105932. Gautret P, Lagier J-C, Parola P, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020 Mar 20. International Society of Antimicrobial Chemotherapy (ISAC). Statement on IJAA paper Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial (Gautret P et al. PMID 32205204)[Internet]. ISAC. Conselho Federal de Medicina. Processo-consulta CFM no 8/2020 - Parecer CFM no 4/2020. Brasilia, 23/04/2020. Conselho Federal de Medicina. CFM condiciona uso de cloroquina e hidroxicloroquina à critério médico e consentimento do paciente. 23/04/2020. TEXTO Questões éticas de uma pandemia. Carlos Frederico de Almeida Rodrigues. Médico, neurocirurgião, mestre em Filosofia Política e Ética pela PUCRS e doutorando em Bioética pela Universidade do Porto – Portugal. Os desafios humanos e sociais das estratégias de luta contra a pandemia de corona vírus devem ser tratados com o caráter de urgência que o momento demanda. Como preservar os valores da democracia, os valores de humanidade e, sobretudo, os valores éticos na gestão de uma crise internacional vivenciada ao vivo e em tempo real, dentro de um contexto favorável à transmissão do vírus e também à disseminação de medos e discriminações de todos os tipos? Questões delicadas que nas condições atuais demandam uma mobilização da sociedade, como proceder dessa forma quando mesmo autoridades constituídas parecem se importar mais com perdas econômicas que com o humano? Cuidar da Economia, do “Oikos”, é cuidar da casa e, por mais óbvio que seja, não existe uma casa, no sentido de lar, sem pessoas. As pessoas devem ser reconhecidas e respeitadas em suas necessidades básicas e em seus direitos, para que, na reciprocidade de uma relação de confiança, aceitem as regras de solidariedade que às vezes são obrigatórias em situações extremas. As pessoas devem ser reconhecidas acima de ´leis´ de um mercado que não passa de mera convenção humana. Esses princípios humanos são afirmados pela OMS e pelos órgãos éticos que dedicaram um trabalho aprofundado à avaliação dos impactos sociais de uma pandemia. A vida democrática deve ser capaz de superar o acúmulo de desafios que exigem tanto a força de nossas convicções quanto as habilidades necessárias para garantir a melhor governança possível em um contexto incerto. Equidade no acesso aos cuidados, justiça na distribuição dos tratamentos disponíveis, atenção aos mais vulneráveis, respeito pelos princípios da humanidade, inclusive em circunstâncias em que os imperativos da quarentena devem ser impostos, bem como escolhas trágicas, decisões e perguntas geralmente não publicadas representam tantos dilemas a serem enfrentados que muitas vezes preferimos fingir que não existem. A reflexão ética é convocada onde as realidades imediatas exigem arbitragem fundamentada, decisões justas e admissíveis, mesmo que adotadas com urgência. Também parece óbvio que não podemos lutar sozinhos contra uma ameaça global de pandemia e que a atenção ética envolve a compreensão do campo de responsabilidades além de nossas prioridades e fronteiras nacionais. A causa das pessoas que vivem em países carentes de recursos e meios essenciais para as políticas públicas de saúde não pode ser negligenciada. As vulnerabilidades exigem outras obrigações, pois é, no fim de todas as contas (com trocadilho mesmo), a obrigação Ética por excelência responder aos gritos dos vulneráveis. Os órgãos do governo que estão trabalhando efetivamente para preparar o país para uma possível pandemia demonstram que estão cientes de tais questões? Em nosso país, carente de tudo, mas nas últimas décadas parece ter ficado carente de humanidade, existe uma espécie de aposta de Pascal. “O vírus é pandêmico, o vírus é uma gripinha, devemos defender o humano, alguns podem morrer para a economia andar”. Merecemos pagar pra ver essa aposta? Não seria o imperativo Ético a prudência? Tudo aquilo que podemos fazer, devemos fazer? Se nos perguntássemos isso com mais frequência não evitaríamos tantos dilemas éticos? Portanto, é necessário agora identificar e esclarecer publicamente os princípios, que vamos usar para nos guiar nesse momento de tomada de decisão, sobretudo na urgência que são necessárias. Portanto, nada deve ser negligenciado ou ignorado em relação à parte humana e ao impacto social de uma pandemia. Suas consequências não se limitam à nossa capacidade de circunscrever um fenômeno global e complexo pelo mero uso do estoque de EPIs. Outros imperativos nos constrangem, mesmo que apenas aqueles que condicionam a vida democrática quando as liberdades públicas correm o risco de serem confrontados com medidas excepcionais. Se o corona está ou não causando uma pandemia não devia ser foco de nossas discussões, visto que diversos órgãos, incluindo a OMS estão nos alertando, nosso foco deveriam ser os aspectos éticos da luta contra uma ameaça à saúde de tal magnitude e ameaça mesmo ao nosso modo de viver e aos princípios éticos e democráticos, não somente pela ação do vírus mas, como sempre, pela ação do próprio ser humano.


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