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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

Bioética e população LGBTQI +

Atualizado: 18 de dez. de 2023



VATICANO AUTORIZA BENÇÃO PARA CASAIS DO MESMO SEXO.


Suprema Corte dos EUA permite que empresa recuse atendimento a casais do mesmo sexo



Congresso do Chile aprova casamento gay e adoção por casais homoafetivos







TJ-SP nega pedido para plano de saúde pagar cirurgia de redesignação sexual por julgá-la 'estética'


'Monstro, prostituta, bichinha': como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil







Doação de sangue e homossexualidade masculina.


Vulnerar significa ferir, ofender. Vulnerável é quem pode ser vulnerado, ferido, ofendido. Vulnerabilidade é a qualidade ou estado de quem é vulnerável. (HOSSNE, 2009). Entende-se que a vulnerabilidade é condição comum a todos os seres humanos considerando sua existência, finitude e fragilidade. Todo ser humano está exposto à agentes que possam feri-lo, ofendê-lo, vulnerá-lo[A1] , sejam eles animais, pessoas, natureza. Não entendo[A2] com isso, qualquer prejuízo para o humano, posto que ser vulnerável é o que nos define como tal e permite, até mesmo, a existência de nossa profissão, pois só o vulnerável exige um cuidado, sobretudo, o cuidado ético[A3] . Existe, entretanto, duas situações: a de ser vulnerável e a de estar vulnerável, ser vulnerado. Como já supracitado, ser vulnerável é uma característica universal de todo e qualquer ser humano, de qualquer ser vivo. No entanto estar vulnerável implica estar exposto à riscos que potencialmente podem vulnerar, ferir, o indivíduo. (SANCHES; MANNES; CUNHA; 2018).

A Bioética dedica-se, de forma mais contundente, às questão da vulnerabilidade devido à crescente possibilidade do ser humano passar do estado de ser vulnerável para o de estar vulnerável. Alguns indivíduos encontram-se em estado de maior vulnerabilidade que outros, seja por questão de classe, cor, gênero, nacionalidade, questões socioeconômicas como violência, pobreza, falta de educação e sofrem o processo que chamamos de vulnerabilidade social. (SANCHES; MANNES; CUNHA; 2018).

Entretanto alguns grupos passam por situações as quais tornam o conceito de vulnerabilidade social restrito. Sanches et.al (2018), aborda o conceito de vulnerabilidade moral, que engloba a vulnerabilidade num contexto de privação dos direitos, estigmatização, discriminação e negação da dignidade humana. E é nesse contexto que os homossexuais se inserem, como grupo que vem sofrendo o processo de vulneração. São pessoas cuja história vem atrelada à do preconceito, discriminação, estigmatização, privação de direitos, e isso, é, pois, um processo de vulnerabilidade social e moral. (SANCHES et.al, 2018).

Outra ponto fundamental de estudo da Bioética é a sua relação com o direitos humanos. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) proposta pela UNESCO em 2016, reconhece os direitos humanos como referência mínima para a bioética. Em seu artigo 11, ela afirma que “nenhum indivíduo ou grupo deve, em circunstância alguma, ser submetido, em violação da dignidade humana, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, a uma discriminação ou a uma estigmatização.” (UNESCO, 2006). Entretanto, o comportamento da sociedade tem ido na contramão desses preceitos. Segundo relatório oficial de 2017 lançado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 445 LGBT+ (gays, lésbicas, bissexuais e transexuais) morreram no Brasil em 2017, representando um aumento de 30% nas mortes quando comparado à 2016. Esses dados colocam o Brasil em primeiro lugar mundial como pais que mais comete crimes contra minorias sexuais. (GGT, 2017). Por conta disso, os estudos bioéticos sobre direitos humanos e respeito à dignidade humana tornam-se essenciais.

Definir o que é a dignidade humana não é uma tarefa fácil, e sempre gerou controvérsias em relação ao seu conteúdo e significado (GODOI; GARRAFA, 2014). Sarlet, 2009, aborda o conceito de dignidade como sendo uma qualidade inerente da pessoa humana e, por conta disso, é “irrenunciável, inalienável e indisponível” se constituindo em uma característica que não pode ser “criada, concedida ou retirada, ainda que possa ser violada”, já que é intrínseca à condição humana, entretanto que deve ser respeitada e protegida. (SARLET, 2009, pg )

Uma forma mais fácil de definir o que é a dignidade humana é entendermos o que acontece quando ela é retirada da pessoa. Ao expressar que a estigmatização e a discriminação se constituem como violações à dignidade humana, o artigo 11 da DUBDH remete à ideia de que a dignidade humana e o estigma estão intimamente associados. Um só existe na negação do outro. Quando retiramos do outro a sua dignidade, estamos diminuindo o outro naquilo que o constitui, ele é rebaixado, inferiorizado, humilhado, e é nesse contexto que se produz a estigmatização do outro. (GODOI; GARRAFA; 2014).

Em relação à população LGBT+, sua evolução histórica foi profundamente marcada por constantes vulnerações. A discriminação e estigmatização se constituem como base para todo o processo de vulnerabilidade a que essa população tem sido exposta. Por conta disso, é importante entender como o estigma atua no processo de desvalorização da pessoa humana e como ele culmina em vulnerações mais contundentes, como agressões físicas, ou vulnerações mais sutis, como a concessão de direitos.

O estigma é um atributo profundamente depreciativo que se constitui a partir de uma diferença, provocando um efeito de inferioridade no seu portador. O estigma diminui a pessoa que o possui, tornando-a menos que os demais, ferindo a dignidade humana. (GOFFMAN, 1988; GODOI; GARRAFA; 2014). A pessoa que possui algum estigma é vista como portadora de uma “diferença indesejável”. A sociedade aplica o estigma ao que é diferente por meio de regras e sanções lhes atribuindo uma “identidade deteriorada”, o que implica em exclusão do sujeito e desrespeito à dignidade humana. (GOFFMAN, 1988).

Segundo Parker e Aglleton, 2001, o estigma é construído no ponto de intersecção entre a cultura, a diferença e o poder. No contexto da epidemia de AIDS/HIV, essas três esferas se apresentam de uma forma muito clara. O HIV e a AIDS foram observados, incialmente, entre pessoas já marginalizadas, membros de comunidades e grupos socialmente oprimidos e indesejáveis. Sua continuada estigmatização e opressão acentuaram sua vulnerabilidade, criando um círculo vicioso de estigmatização e discriminação que perdura até hoje. O poder dentro de uma sociedade – representado aqui por uma maioria heterossexual, livre da doença e cuja moral é pautada em valores cristãos (FOUCAUT )- até certo ponto, é usado para legitimar as desigualdades dentro de uma estrutura social. E o estigma desempenha papel importante na transformação de uma diferença em uma desigualdade social. Dessa forma, o estigma é executado de forma a afirmar o status dominante de quem o aplica em detrimento ao estigmatizado dentro das estruturas das desigualdades sociais existentes. (PARKER; AGLLETON, 2001 pg 16).

O estigma e a discriminação são processos sociais. O estigma tem papel central na reprodução das relações de poder, fazendo com que alguns grupos sejam desvalorizados, subjugados enquanto ouros se afirmam como superiores. Isso se constitui, em última análise em desigualdade social. Cria uma hierarquia social entre os estigmatizados e os não-estigmatizados, reforçando políticas de exclusão. (PARKER; AGLLETON, 2001). Para entender melhor esse processo, é necessário que se saiba como alguns grupos se tornaram socialmente excluídos, como é o caso das populações homossexuais e portadoras de AIDS e como essa exclusão ainda tem reflexos nas políticas que embasam o comportamento social e de direitos atual.

Em qualquer sociedade, em qualquer tempo de sua existência, a distinção entre desejo sexual (homo/heteroafetivo) ou gênero (masculino/feminino) nunca funcionou apenas como um dispositivo de reprodução biológica, mas sim como um dispositivo de reprodução da ordem social. (PARKER; AGLLETON, 2001; BORRILHO,2010). Do mundo das escrituras antigas ao cristianismo moderno, determinados grupos sempre estiveram à margem de uma sociedade de direitos por apresentarem comportamentos ou características tidas como desviantes para a moral então vigente. Mulheres, negros, judeus e homossexuais compuseram e ainda compõem o leque de discriminação e vulnerabilidade. (BORRILHO,2010)

Inicialmente sob a justificativa de preservação biológica da espécie, com respaldo em textos bíblicos, e mais tarde pela conservação cultural de uma sociedade patriarcal, o Império Romano condenava desde a castração até a fogueira as práticas homossexuais passivas. A Revolução Francesa veio dar um falso ar de liberdade ao tirar a homossexualidade da lista de heresias. Entretanto, em 1960 é aprovado um decreto que, ao lado do alcoolismo, tráfico de mulheres e proxenetismo, a homossexualidade deixou de ser pecado para ser considerada um crime, sendo punida pela lei de um estado laico. (BORRILHO, 2010,PG 56).

Durante o regime Stalinista, os homossexuais eram vistos como uma forma de reprodução do fascismo e por conta disso, sua manifestação era punida com anos de trabalhos forçados. Enquanto isso, o Fascismo alemão deferia sobre os homossexuais experimentos a fim de curá-los, na falha desde, castração para lhes privar o prazer, prisões e mortes sumárias em campos de concentração em nome da reprodução de da raça ariana para garantir a supremacia alemã. (BORRILHO, 2010). Além do pecado e do crime, na história houve uma nova forma de discriminação que foi a transformação da homossexualidade em patologia. Tanto pela igreja quanto pela academia médica. De uma forma mais racional, deixam de excluir os homossexuais e passam a tentar entender as origens somáticas ou psicológicas dessa “doença”, corrigi-la, cura-la para que esses enfermos pudessem se adaptar ao padrão monogâmico heterossexual. (FOUCAUT, 2015).

Os exemplos são numerosos e ilustram muito bem as raízes religiosas e as justificativas políticas e judiciais que embasam o comportamento discriminatório contemporâneo. Os homossexuais foram sempre um grupo que viveu à margem da sociedade e viu sua identidade ser reprimida, excluída, condenada, ameaçada, discriminada. Jamais teve lugar, nas palavras de Foucaut:

O que não é regulado para a geração ou por ela não é transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe como não deve existe e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras. (FOUCAUT, 2015, pg 8).

Mesmo deixando de ser considerada um crime, as práticas homoafetivas deveriam permanecer restritas ao espaço privado. A homossexualidade é tolerada, porém, somente a heterossexualidade é reconhecida socialmente como único comportamento digno de institucionalização. (BORRILHO, 2010, PG, 76). Hoje esses pilares de discriminação sustentam questões como o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças e a doação de sangue por homossexuais. O Estado garante apenas o respeito à essas pessoas em sua esfera particular, porém, não assume o papel de garantir direitos e igualdade. (GODOI;GARRAFA, 2014).

O preconceito e a discriminação preexistentes foram reforçados e assumem seu apogeu com a epidemia de HIV/AIDS na década de 80. Os primeiros casos de HIV/AIDS foram identificados em homossexuais. Automaticamente a doença foi associada ao comportamento sexual dessa população. Na concepção popular, a AIDS era consequência do comportamento imoral de homossexuais. Promíscuos, depravados, punição divina pelo pecado, câncer gay, aidético. Toda uma gama de estigmas foram retomadas e novamente despejadas sobre a população homossexual. O surgimento da doença inicialmente nas populações já historicamente estigmatizadas foi a justificativa perfeita para manutenção de um preconceito histórico. Mais do que nunca, o homossexual portador de HIV/AIDS é socialmente excluído, tendo sua cidadania negada. (OLIVEIRA, 2005)

A associação do HIV/AIDS à homossexualidade, e mais tarde a outras formas de estigmatização, como a prostituição, entre toda a história da epidemia, ainda hoje continua a funcionar como o aspecto mais enraizado do estigma, da discriminação e da estigmatização relacionados ao HIV e à AIDS. Esses estigmas que associam o HIV e à AIDS à homossexualidade são tradicionalmente tolerados e claramente aceitos nas sociedades em todo o mundo. (PARKER ; AGLLETON, 2001).

Conforme a epidemia de AIDS tomava cada vez mais corpo, com ela surgiam medidas que visavam seu controle. Como a concepção da AIDS foi construída a partir de meias compreensões ou completas incompreensões, à medida que essas ações para entender ou controlar a epidemia se desenvolviam, de forma mais concreta e eficaz se desenvolvia a estigmatização e a discriminação. A despeito dos avanços quanto ao controle da epidemia – principalmente no que tange as questões de tratamento mais eficazes, campanhas de prevenção - quase nada tem siso feito para tratar da questão do estigma e da discriminação que as pessoas que vivem com a doença tem sofrido. (PARKER; AGGLETON, 2001).

O estigma que a AIDS/HIV carrega consigo, agravado pelo preconceito e discriminação pela população LGBT+, em especial aqui, homens que fazem sexo com outros homens, gera consequências que saem do âmbito da vida pessoal assumindo características globais, quem influenciam na tomada de decisões, na criação de políticas públicas e concessão de direitos. Tão importante quanto a doença em si, é a onda de preconceitos e estigmatização que a AIDS trouxe consigo. Tão importante quanto a doença em si, é o preconceito e as consequências dente para a sociedade. Mann, citado por Herbert e Parker em seu livro, trada desse tema, quando afirma a existência de três epidemias associadas à AIDS/HIV:

Segundo o Dr. Jonathan Mann, da Organização Mundial de Saúde, podemos indicar pelo menos três fases da epidemia de AIDS (...). A primeira é a epidemia da infecção pelo HIV que silentemente penetra na comunidade e passa muitas vezes despercebida. A segunda epidemia, que ocorre alguns anos depois da primeira, é a epidemia da própria AIDS: a síndrome de doenças infecciosas que se instalam em decorrência da imunodeficiência provocada pela infecção pelo HIV. Finalmente, a terceira (talvez, potencialmente, a mais explosiva) epidemia de reações sociais, culturais, econômicas e políticas à AIDS, reações que, nas palavras do Dr. Mann, são ‘tão fundamentais para o desafio global da AIDS quanto a própria doença. (HERBERT; PARKER, 1991, p.13).

Frente ao avanço da epidemia de AIDS dos anos 80 associado aos acidentes de contaminação ocorridos devido à transfusão de hemoderivados, diversos países adotaram critérios rígidos quanto à exclusão de homossexuais como doadores de sangue. Estados Unidos, França, Inglaterra, Canadá, Austrália, dentre outros países, sob recomendação da Food and Drugs Administration (FDA), impuseram à todos os homens que fizeram sexo com outros homens, em qualquer momento desde 1997, a exclusão permanente de doarem sangue. (TANAKA; OLIVEIRA; 2010).

No Brasil, as legislações referentes ao processo de doação de sangue começaram a aparecer em 1988. Em 1993, com a Portaria 1.376 do Ministério da Saúde, foi estabelecida a exclusão permanente dos indivíduos com sorologia positiva para HIV e/ou que tivessem história de pertencer ou ter pertencido a grupos de risco para aids, como homossexuais, prostitutas, usuários de drogas injetáveis, e/ou que tenham como parceiro sexual indivíduos que se incluam naquele grupo. (TANAKA, OLIVEIRA 2010). Em 2002, através do RDC 343 da ANVISA, homens que fazem sexo com outros homens tornaram-se inaptos temporários, por um período de 12 meses, à doação de sangue. (ANVISA, 2002).

Mesmo com todo o conhecimento atual acerca da doença, seu agente etiológico, formas de transmissão, prevenção e tratamento, a AIDS/HIV ainda é associada à homossexualidade, vendida à sociedade como sendo sinônimos. (GODOI; GARRAFA; 2014). As consequências dessa associação podem ser vistas em diversas ações que permeiam a concessão de direitos à comunidade LGBT+ e a legislação sobre o processo de doação de sangue se constitui em exemplo atual de como a correlação AIDS/HIV/homossexualidade ainda afeta essa população. (CARDINALLI, 2016).

Segundo a portaria Nº 158, de 4 de fevereiro de 2016, a doação de sangue é um ato voluntário e altruísta, e ao doador de sangue devem ser garantidos os princípios da universalidade, equidade e integridade preconizados pelo SUS. O acolhimento e a triagem realizada pelo serviço de coleta deve ser isenta de manifestação de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, etnia, cor, sem prejuízo à segurança do receptor (MINISTÉRIO DA AÚDE, 2016). De acordo com o Artigo 64 desta portaria:

Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:

I - que tenha feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas ou seus respectivos parceiros sexuais;

II - que tenha feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais;

III - que tenha sido vítima de violência sexual ou seus respectivos parceiros sexuais;

IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes;

V - que tenha tido relação sexual com pessoa portadora de infecção pelo HIV, hepatite B, hepatite C ou outra infecção de transmissão sexual e sanguínea;

VI - que tenha vivido situação de encarceramento ou de confinamento obrigatório não domiciliar superior a 72 (setenta e duas) horas, durante os últimos 12 (doze) meses, ou os parceiros sexuais dessas pessoas;

VII - que tenha feito "piercing", tatuagem ou maquiagem definitiva, sem condições de avaliação quanto à segurança do procedimento realizado;

VIII - que seja parceiro sexual de pacientes em programa de terapia renal substitutiva e de pacientes com história de transfusão de componentes sanguíneos ou derivados; e

IX - que teve acidente com material biológico e em consequência apresentou contato de mucosa e/ou pele não íntegra com o referido material biológico (Ministério da Saúde, 2016).

Um ponto central na discussão sobre o processo de doação de sangue que deve ser considerado, é o fato de a população formada por homens que fazem sexo com outros homens ser constituída em sua maioria por homossexuais do sexo masculino. Por conta disso, podemos considerar que a vedação da doação é deferida exclusivamente à população homossexual, uma vez que uma minoria de heterossexuais assume ter relações sexuais com outros homens. (CARDINALLI, 2016). Deve-se lembrar, também, que, com essa legislação, mesmo que o homossexual esteja em um relacionamento estável por mais de 12 meses, ou esteja usando preservativos durante as relações sexuais, ele é excluído do processo de doação por 12 meses, o que não acontece com um heterossexual que apresenta-se nas mesmas condições (MORRISON, 2015, CARDINALI, 2016). A legislação é clara quando afirma que o processo de triagem do doador será “isenta de manifestação de juízo de valor” e não haverá discriminação por “orientação sexual”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016). No entanto, o que vemos são conceituações e critérios vagos[A4] ?? (trocar essa palavra), que culminam num processo deliberado de exclusão.

No que diz respeito à AIDS, a atual legislação prevê a vedação da doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens baseada no conceito errôneo de “grupo de risco”. (GODOI; GARRAFA, 2014. CARDINALLI, 2016). Dessa maneira, entende-se que existe um risco de doença relacionada à um grupo de sujeitos específicos. Ocorre aqui uma desvalorização da pessoa humana, onde um grupo de pessoas tem sua existência reduzida apenas à sua prática sexual, e esta por sua vez, é inequivocamente capaz de transmitir o vírus HIV. (GODOI; GARRAFA, 2014). Percebemos como o “pânico moral” que se instaurou à época da epidemia de AIDS foi capaz de contaminar todo o debate em relação à AIDS/HIV e criar a duradoura correlação entre homossexualidade e a AIDS. (CARDINALLI, 2016).

O artigo 52 da portaria n°158/2016 do Ministério da Saúde, trata de alguns critérios do doador que devem ser avaliados pelo médico ou profissional capacitado a fim de proteger o receptor. Alguns desses critérios são referentes ao estilo de vida do paciente e a situação de risco vivenciada pelo candidato a doação. Também afirma que “todos os doadores serão questionados sobre situações ou comportamentos que levem a risco acrescido para infecções sexualmente transmissíveis, devendo ser excluídos da seleção quem os apresentar”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016). De uma forma indireta, a portaria afirma que o estilo de vida de homossexuais se constitui em risco para adquirir AIDS/HIV. Aos homossexuais, sequer é concedido o direto de responder se teve ou não algum comportamento que possa apresentar risco de infecção pelo HIV. À eles é imputado um comportamento de risco e lhes é vedado o direito de doar sangue no momento em que declara sua orientação e prática sexual (preciso reformular essa frase). (CARDINALLI, 2016[A5] ).

Essa política escacara um paradoxo: no Art.64 da portaria n°158/2016 do Ministério da Saúde é garantido um acolhimento aos doadores em que é proibida a emissão de juízo de valor, preconceito, discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, condições socioeconômicas, atividades profissionais, etc., e, ao mesmo tempo exclui deliberadamente homens que fazem sexo com outros homens, independentemente de suas relações serem estáveis, de usarem ou não preservativo. O que se infere disso é que a vedação da doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens hoje não é estabelecida devido à um determinado comportamento de risco, mas por conta de um “traço inerente à uma pessoa que independe do risco”. (CARDINALLI, 2016).

Sabe-se que uma pessoa não contrai HIV/AIDS pelo simples fato de ter relação sexual com uma pessoa do mesmo sexo, mas sim por ter se envolvido em uma situação que seja de risco, como sexo sem camisinha, ter múltiplos parceiros sexuais, relacionamentos não estáveis. (MACADAM & PARKER, 2014; MORRISON, 2015). Por conta disso, o conceito de “grupos de risco” torna-se preconceituoso e discriminatório, à medida que taxa um grupo de pessoas como tendo risco maior de transigir HIV ao invés de vedar a doação às pessoas pelo comportamento que elas apresentam, independente da orientação sexual. (MORRISON, 2015).

Triar a doação de sangue e veda-la aos homossexuais com base no conceito de “grupo de risco” se mostra como um exemplo atual de um preconceito antigo. Segundo palavras de Cardinalli, 2016, “o que há, sob uma tentativa mal disfarçada de definição de conduta, é a fixação de um grupo de pessoas com sexualidade historicamente desviante e vítima de preconceito”. Tais políticas excludentes se constituem em mais um mecanismo que mantém a população homossexual à margem da sociedade e reforçam sua vulnerabilidade social.

A alternativa a isso seria a adoção do conceito de “comportamento de risco”, ao invés de “grupo de risco”, como é feito na triagem de países como Argentina, Colombia, Chile, Itália, Espanha, Portugal e como já vem sendo discutido aqui no Brasil. (MORRISON, 2015). Através desse conceito, a triagem muda o foco para ações que, independentemente das práticas serem homossexuais ou heterossexuais, se constituem em risco para adquirir algum tipo de doença por meio de transfusão. Assim, as mesmas regras são aplicadas para todos os doadores, independentemente de suas práticas sexuais.

[A1]Vulnerá-lo, assim como, também estão expostos a isso animais, natureza, posto que vulnerabilidade é uma condição sine qua non da própria existência. [A2]Não se entende, com isso, .... melhor do que não entendo (muito pessoal). [A3]Rodrigues CFA. FIllus IC. Correlação Genética aptidão ... revista bioética – ver a referência ou a isa me mata. [A4]Conceituações e ausências de sustentabilidade científica ou ética aos critérios adotados. [A5]Se for como no original apenas coloque entre aspas. Caso seja uma adaptação sua, eu colocaria apenas momento em que declara sua sexualidade (não vejo orientação ou escolha da pessoa nisso, apenas manifestação da sua sexualidade, tão saudável quanto qualquer outra). Proibição de doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional, decide STF

Julgamento foi concluído em sessão virtual realizada de 1º a 8 de maio. Por maioria, Plenário acompanhou o entendimento do relator, ministro Edson Fachin.

09/05/2020 15h40 - Atualizado há

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Por maioria de votos (7x4) o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais dispositivos de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que excluíam do rol de habilitados para doação de sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes". O julgamento foi concluído nesta sexta-feira (8) em sessão virtual iniciada no dia 1º de maio. Prevaleceu o voto do relator, ministro Edson Fachin, no sentido de julgar procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), para declarar a inconstitucionalidade de dispositivos da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e da Resolução RDC 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. As normas relacionavam a proibição a critérios que consideravam o perfil de homens homossexuais com vida sexual ativa à possibilidade de contágio por doenças sexualmente transmissíveis (DST). Na ação, o PSB argumentou que tal restrição a um grupo específico configura preconceito, alegando que o risco em contrair uma DST advém de um comportamento sexual e não da orientação sexual de alguém disposto a doar sangue. Corrente majoritária Em seu voto, apresentado quando do início do julgamento, ainda em sessão presencial no Plenário do STF, o ministro Edson Fachin (relator) destacou que não se pode negar a uma pessoa que deseja doar sangue um tratamento não igualitário, com base em critérios que ofendem a dignidade da pessoa humana. Fachin acrescentou que para a garantia da segurança dos bancos de sangue devem ser observados requisitos baseados em condutas de risco e não na orientação sexual para a seleção dos doadores, pois configura-se uma "discriminação injustificável e inconstitucional", disse. Já segundo o ministro Luís Roberto Barroso, de um lado está a queixa plausível de que há discriminação a um grupo que já é historicamente estigmatizado. No outro, também está o interesse público legítimo de se proteger a saúde pública em geral. "Acho perfeitamente possível, acho que pode e, talvez, deva haver eventual regulamentação para prevenir a contaminação dentro do período da janela imunológica. Mas esta normativa peca claramente pelo excesso", afirmou. Para a ministra Rosa Weber, as restrições estabelecidas pelas normas "não atendem ao princípio constitucional da proporcionalidade". Segundo ela, tais normas desconsideram, por exemplo, o uso de preservativo ou não, o fato de o doador ter parceiro fixo ou não, informações que para a ministra fariam diferença para se poder avaliar condutas de risco. O ministro Luiz Fux, por sua vez, sugeriu que seja adotada como critério a conduta de risco e não o grupo de risco. "Exatamente porque o critério da conduta de risco preserva a sociedade e, ao mesmo tempo, permite que esses atos que cerram a construção de uma sociedade solidária sejam realizados". O entendimento da corrente majoritária foi formado ainda pelos votos dos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e da ministra Cármen Lúcia, apresentados na sessão virtual do Pleno. Divergência A corrente divergente teve início com o voto do ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as restrições são baseadas em dados técnicos, e não na orientação sexual. Em seu voto pela parcial procedência da ação, o ministro destacou que a política nacional de sangue, componentes e derivados no país está amparada na Lei 10.205/2001 e no Decreto 3.990/2001 e aponta a necessidade de proteção específica ao doador, ao receptor e aos profissionais envolvidos. O ministro observou que essas normas, no entanto, não foram questionadas na ação e que a leitura dos atos questionados, fora do contexto dessa legislação específica, faz parecer que se tratam de atos discriminatórios contra homossexuais masculinos. Entretanto, segundo o ministro Alexandre de Moraes, "desde 2001 as normas sobre essa questão vêm progredindo, limitando restrições a partir de estudos técnicos". Para o ministro, "é possível a doação por homens que fizeram sexo com outros homens, desde que o sangue somente seja utilizado após o teste imunológico, a ser realizado depois da janela sorológica definida pelas autoridades de saúde". Já o ministro Ricardo Lewandowski, destacou em seu voto que o STF "deve adotar uma postura autocontida diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados". Na avaliação do ministro, deve também guiar-se pelas consequências práticas da decisão, nos termos do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, "evitando interferir em políticas públicas cientificamente comprovadas, especialmente quando forem adotadas em outras democracias desenvolvidas ou quando estejam produzindo resultados positivos.” O entendimento do ministro Lewandowski foi acompanhado também pelo ministro Celso de Mello. O ministro Marco Aurélio também divergiu do relator, e votou pela improcedência da ação (leia a íntegra do voto).

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