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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA

Atualizado: 28 de fev.

Texto referencial para o estudo da Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia.



'A única coisa que mereço é uma morte digna': a mulher que conseguiu descriminalizar a eutanásia no Equador




PORTUGAL SE JUNTA À BÉLGICA, HOLANDA, LUXEMBURGO, ESPANHA, NOVA ZELÂNDIA E COLÔMIBIA E PERMITE O SUICÍDIO MEDICAMENTE ASSISTIDO.


Depois de 28 anos, 3 legislaturas, 4 projetos, 2 vetos presidenciais e 2 declarações de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional a morte medicamente assistida (MMA) foi despenalizada em Portugal.


Na última sexta-feira, dia 12.05.2023, a Assembleia da República decidiu pela despenalização por 129 votos a favor, 81 contra e 1 abstenção. Assim, Portugal passa a ser - junto com Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Espanha, Nova Zelândia e Colômbia - um dos poucos países do mundo que permitem eutanásia e suicídio assistido (há outros poucos países em que apenas a prática do suicídio assistido é despenalizada e/ou legalizada).


DECLARAÇÃO DE MARBELLA - SUICÍDIO ASSISTIDO


World Medical Association Marbella/Espanha - 1992

As solicitações para suicídio medicamente assistido tem, recentemente, chamado à atenção pública. Estas solicitações envolvem o uso de uma máquina, inventada por um médico que instrui o indivíduo no seu uso. O indivíduo, desta forma, é auxiliado a cometer suicídio. Em outras solicitações, o médico tem fornecido medicação ao indivíduo, com as informações sobre o volume de dose que poderá ser fatal. O indivíduo, desta forma, recebe os meios para cometer o suicídio. Certamente, os indivíduos envolvidos estão seriamente doentes, talvez em estado terminal, e estão martirizados pela dor. Além disso, os indivíduos estavam aparentemente competentes e fizeram sua própria decisão de cometer o suicídio. Os pacientes que contemplam a possibilidade de suicídio, frequentemente, expressam a depressão que acompanha a doença terminal. O suicídio medicamente assistido, assim como a eutanásia, é eticamente inadequado e deve ser condenado pela profissão médica. Quando a assistência do médico é intencional e dirigida deliberadamente para possibilitar que um indivíduo termine com a sua própria vida, o médico atua de forma eticamente inadequada. Entretanto, o direito de recusar um tratamento médico é um direito básico do paciente e o médico não atua de forma eticamente inadequada, mesmo que o respeito a este desejo resulte na morte do paciente.


World Psychiatric Association. Physicians, patients, society: human rigths and professional responsabilities of physicians. Amsterdam: WPA, 1996:55-6.

SUICÍDIO ASSISTIDO

O suicídio assistido ocorre quando uma pessoa, que não consegue concretizar sozinha sua intenção de morrer, e solicita o auxílio de um outro indivíduo.

A assistência ao suicídio de outra pessoa pode ser feita por atos (prescrição de doses altas de medicação e indicação de uso) ou, de forma mais passiva, através de persuasão ou de encorajamento. Em ambas as formas, a pessoa que contribui para a ocorrência da morte da outra, compactua com a intenção de morrer através da utilização de um agente causal.

O suicídio assistido ganhou notoriedade através do Dr. Jack Kevorkian, que nos Estados Unidos, já o praticou várias vezes em diferentes pontos do país, por solicitação de pacientes de diferentes patologias.

Existe uma instituição, denominada de Hemlock Society (ou Sociedade Cicuta), numa clara alusão ao suicídio de Sócrates. Esta Sociedade publicou, em 1991, um livro, A Solução Final, que apresentava inúmeras maneiras de um paciente terminal ou com doenças degenerativas cometer suicídio. Este livro vendeu mais de 3 milhões de cópias nos Estados Unidos. No Brasil, onde foi também traduzido, não causou maior impacto.

Por outro lado, associações como Not Dead Yet (ainda não mortos), de pessoas portadoras de deficiencias físicas, caracterizam esta possibilidade como sendo um padrão duplo (duplo standard) que os discrimina frente ao restante da sociedade.

Em 08 de janeiro de 1997 a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos, julgando o caso Quill, declarou não haver diferenças morais ou legais entre não implantar ou retirar um tratamento e auxiliar um paciente a suicidar-se. Posteriormente, em 26 de junho de 1997, a Suprema Corte Norte Americana alterou este raciocínio, voltando a admitir que existem diferenças marcantes entre estes procedimentos.

Ramon SanPedro, um espanhol tetraplégico que havia solicitado na Justiça várias vezes que lhe fosse permitida a eutanásia, acabou morrendo após 29 anos de solicitações, através de um suicídio assistido. Este ato final foi gravado em vídeo como forma de documentar a sua ação pessoal na administração da medicação em dose letal.

Desde 1997 o estado norte-americano de Oregon tem uma Lei vigente que possibilita aos seus residentes solicitarem o auxílio para se suicidarem. No ano de 1999, foram registrados oficialmente 33 casos de suicídio assistido.

A Suíça também permite a realização do suicídio assistido, inclusive podendo ser realizado sem a participação de um médico e o a pessoa que deseja morrer não necessita estar em fase terminal. A base legal é o Código Penal de 1918, que afirma que o suicídio não é crime. O único impedimento é quando o motivo for egoista, por parte de quem auxilia. A Eutanásia não está pervista na legislação suíça.

deBlois J, Norris P, O'Rourke K. A primer for health care ethics. Washington: Georgetown, 1995:182.

Humphry D. A solução final. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.



# EXTUBAÇÃO PALIATIVA


EXTUBAÇÃO PALIATIVA

PARECER N.º 2867/2021 CRM-PR

ASSUNTO: EXTUBAÇÃO PALIATIVA PEDIÁTRICA

PARECERISTA: Cons.ª ÚRSULA BUENO DO PRADO GUIRRO

Como em toda Medicina, um paciente apresenta condições clínicas que vão sendo diagnosticadas ao longo da evolução. Com o acompanhamento da evolução, exames físico e complementares, o médico poderá compreender melhor o caso. Nos Cuidados Paliativos, não poderia ser diferente e não há um ponto exato de indicação ou de condutas específicas: trata-se da avaliação médica continuada. Desta maneira, conforme a evolução do paciente, um recurso técnico – como a intubação orotraqueal e a ventilação mecânica citadas neste parecer – poderá ter indicação em uma fase de tratamento e não ter em outra. Mas o cuidado com a pessoa adoecida prossegue: são os Cuidados Paliativos. Ou seja, instituiu-se inicialmente um tratamento que visava à manutenção da vida até a compreensão do caso. Diante da evolução e elucidação, o conjunto de recursos terapêuticos poderá se tornar desproporcional para o momento de vida enfrentado, havendo a possibilidade de adequação deste suporte para as condições atuais do paciente, vislumbrando a qualidade de vida, o manejo de sintomas desconfortáveis e não a morte precoce.

Neste contexto, a Resolução CFM n.º 1.805/2006 foi brilhantemente redigida e permitiu a ortotanásia no cenário brasileiro e descreveu que o médico pode limitar e suspender procedimentos na terminalidade da vida: “Art. 1º - É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.”

Há situações clínicas em que o médico recomenda não ofertar determinada terapêutica porque não é oportuna ou porque é desproporcional ao momento enfrentado pela pessoa adoecida. Esse é o withholding. Trata-se de não instituir um tratamento, que em outra condição clínica mais favorável poderia ter indicação. Por exemplo, o médico deixa de realizar uma cirurgia quando avalia que há o risco de a própria intervenção cirúrgica encurtar a vida do paciente. Aqui há espaço para a discussão de que não é porque um procedimento existe que ele sempre deverá sempre ser ofertado ou seria obrigatório, pois pode não ser beneficente ao paciente, abreviaria a vida, desrespeita a dignidade humana, é desproporcional e pode promover a distanásia. Por outro lado, se o tratamento já estiver instituído e não é mais proporcional nessa fase da vida, a terapia poderia seria descontinuada pelo médico. Esse é o withdrawing. Aqui temos, por exemplo, a suspensão de quimioterapia a partir da piora clínica ou da disseminação da doença, a modificação da técnica cirúrgica para uma menos extensa ou menos agressiva, a suspensão de antibióticos e a extubação paliativa. Aqui há espaço para a discussão de que não é porque um procedimento foi indicado anteriormente e estava sendo realizado que ele deverá permanecer indefinidamente.

De acordo com Macauley (2018) , a não introdução e a retirada de terapias são situações conflituosas para os profissionais de saúde, mas seriam eticamente permitidas, uma vez que os pacientes não são obrigados a aceitar indefinidamente as terapêuticas sustentadoras da vida quando estas não promovem benefícios ou a recuperação clínica minimamente satisfatória. O médico deverá diagnosticar e descrever a terminalidade da vida e a irreversibilidade do quadro clínico em prontuário. De acordo com a Resolução CFM n.º 1.805/20065, é assegurado ao paciente – se assim desejar – uma segunda opinião médica e é recomendada a manutenção dos cuidados necessários para o alívio de toda forma de sofrimento. Mas, para a efetiva realização da extubação paliativa, sugere-se fortemente envolver, quando for possível, o paciente, o representante legal, bem como obter o consentimento. Se houver Diretivas Antecipadas de Vontade, o médico deverá levá-las em consideração. Uma atenção especial deve ser dada para o manejo de sintomas desconfortáveis após a extubação, especialmente a dispneia e hipersecreção.

RESOLUÇÃO 1805/06 – ORTOTANÁSIA – CFM

Em 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução (1.805/06), autorizando a ortotanásia - os médicos poderiam limitar ou suspender os procedimentos e tratamentos que prolongassem a vida de doentes terminais acometidos de enfermidades graves e incuráveis

O Conselho Federal de Medicina brasileiro aprovou a Resolução nº 1.805/2006, sobre a prática da ortotanásia, que autoriza o médico a limitar ou suspender tratamentos, no caso de doença grave sem possibilidades de cura, e a ofertar cuidados paliativos, desde que com consentimento do paciente ou seu representante legal.





Deputados uruguaios aprovam projeto para legalizar a eutanásia


https://www.cartacapital.com.br/politica/deputados-uruguaios-aprovam-projeto-para-legalizar-a-eutanasia/


O suicídio assistido de Godard é uma metáfora para a morte do Ocidente




Itália autoriza pela primeira vez suicídio assistido a homem que está paraplégico há 10 anos


https://observador.pt/2021/11/24/italia-autoriza-pela-primeira-vez-suicidio-assistido-a-homem-que-esta-paraplegico-ha-10-anos/



Revisão histórica

Desde a antiguidade, a eutanásia é assunto presente e discutido na história da humanidade. Diversos povos, como os Celtas, por exemplo, tinham por hábito que os filhos matassem os seus pais quando estes estivessem velhos e doentes.

A discussão perpassa os valores sociais, culturais e religiosos envolvidos na questão da eutanásia. Na Grécia, por exemplo, Platão, Sócrates e Epicuro defendiam a ideia de que o sofrimento resultante de uma doença dolorosa justificava o suicídio. Em Marselha, colônia grega, havia, por exemplo, um depósito público de cicuta disponível para todos. Aristóteles, Pitágoras e Hipócrates, ao contrário, condenavam o suicídio. “Eu não darei qualquer droga fatal a uma pessoa, se me for solicitado, nem sugerirei o uso de qualquer uma deste tipo”, diz o juramento de Hipócrates. (Centro de Estudos Ético-Filosóficos em Saúde, 2012). As discussões, é claro, vão além da Grécia, Cleópatra VII (69 a.C. – 30 a.C.) criou no Egito uma “Academia” para estudar as formas menos dolorosas de morrer. Ao longo da história da humanidade, a discussão continua com a participação de Lutero, Thomas Morus (Utopia), David Hume (On Suicide), Karl Marx (Medical Euthanasia) e Schopenhauer (OSELKA; GARRAFA, 1998).

No século XIX, o apogeu da discussão ocorreu em 1895, na então Prússia, quando o Estado promoveu uma discussão sobre a realização de eutanásia em pessoas que se tornaram incapazes para solicitá-las. Isso fomentou a discussão, na Europa, sobre a proximidade entre eutanásia e eugenia.

O Século XX assistiu ao ápice da eutanásia social e o aprofundamento das discussões sobre a eutanásia em si. Em 1931, na Inglaterra, surgiu uma proposta de lei para legalização da eutanásia voluntária, discutida até 1936, quando foi rejeitada. Essa proposta serviu, posteriormente, de base para o modelo holandês. Durante o debate, o médico real, Lord Dawson, revelou que tinha ‘facilitado’ a morte do Rei George V, utilizando morfina e cocaína.

O Uruguai, em 1934, incluiu a possibilidade da eutanásia em seu código penal, o chamado ‘homicídio piedoso’. Possivelmente a primeira regulamentação nacional sobre o tema está em vigor ainda hoje. A doutrina do professor Jiménez de Asúa, formulada em 1925, serviu de base para a proposta uruguaia.

Em Outubro de 1939, foi iniciado o programa nazista de eutanásia, sob o código ‘Aktion T4’, que objetivava eliminar pessoas cuja vida ‘não merecia ser vivida’.

Em 1954, o teólogo episcopal Joseph Fletcher, publicou um livro denominado ‘Morals and Medicine’, no qual havia um capítulo com o título “Euthanasia: our right to die”. Em 1956, a Igreja Católica posicionou-se contrariamente à eutanásia por esta ser uma prática contra a ‘lei de Deus’.

Pio XII, em 1957, aceitou a possibilidade de que a vida pudesse ser encurtada como efeito secundário à utilização de drogas desde que a fim de diminuir o sofrimento de pacientes com dores insuportáveis – o princípio do duplo efeito.

Em 1968, a Associação Mundial de Medicina adotou uma resolução contrária à eutanásia.

Em 1973, na Holanda, uma médica geral, Dra Gertruida Postma, foi julgada por ter praticado eutanásia em sua mãe com uma dose letal de morfina. Foi processada e condenada por homicídio, com uma pena de prisão de uma semana (suspensa) e liberdade condicional por um ano. No julgamento, foram estabelecidos os critérios para a ação do médico.

Em 1980, o Vaticano divulgou uma declaração sobre a eutanásia na qual existe a proposta do duplo efeito e o da descontinuação de tratamento considerado fútil.

Em 1981, a corte de Rotterdam revisou e estabeleceu os critérios para o auxílio à morte. Em 1990, a Real Sociedade dos Países Baixos e o Ministério da Justiça estabeleceram uma rotina de notificação para os casos de eutanásia, sem torná-la legal, apenas isentaram o profissional de procedimentos criminais.

Em 1991, houve uma tentativa frustrada de introduzir a eutanásia no código civil da Califórnia. Naquele mesmo ano o Papa João Paulo II reiterou a posição contrária ao aborto e à eutanásia.

Os territórios do norte da Austrália, em 1996, aprovaram uma lei que possibilita formalmente a eutanásia. Meses depois, esta lei foi revogada, impossibilitando a realização da eutanásia na Austrália.

Em 1996, foi proposto um projeto de lei no Senado Federal (125/96), instituindo a possibilidade de realização de procedimentos de eutanásia no Brasil. A avaliação nas comissões especializadas não prosperou.

Em maio de 1997, a Corte Constitucional da Colômbia estabeleceu que “ninguém pode ser responsabilizado criminalmente por retirar a vida de um paciente terminal que tenha dado seu claro consentimento”.

Em outubro de 1997, o Estado do Oregon (EUA) legalizou o suicídio assistido.

Em novembro de 2000, a câmara de representantes dos Países Baixos aprovou uma lei que permite, inclusive aos menores de idade, solicitar eutanásia.

Eutanásia

A palavra ‘eutanásia’ tem sido utilizada de maneira confusa e ambígua. Surgiram, assim, várias novas palavras como ‘distanásia’, ‘ortotanásia’ e ‘mistanásia’, gerando problemas conceituais.

O termo ‘eutanásia’ vem do grego, podendo ser traduzido por “boa morte” ou “morte apropriada”. O termo foi proposto por Francis Bacon, em 1623, em sua obra ‘Historiae vitae et mortis’, como sendo o ‘tratamento adequado às doenças incuráveis’ (OSELKA; GARRAFA, 1998).

O termo ‘eutanásia’ é muito amplo e pode ter diferentes interpretações, existindo dois elementos básicos na sua caracterização: a intenção e o efeito da ação. A intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação (eutanásia ativa) ou uma omissão, isto é, a não realização de uma ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância (eutanásia passiva).

Da mesma forma, a eutanásia, assim como o suicídio assistido, é diferente da decisão de retirar ou da de não implantar um tratamento que não tenha eficácia ou gere desconfortos, unicamente para prolongar a vida de um paciente. Ao contrário da eutanásia e do suicídio assistido, essa retirada ou não implantação de medidas consideradas fúteis não agrega outra causa que possa conduzir à morte.

A tradição hipocrática tem acarretado que os médicos e outros profissionais de saúde se dediquem a proteger e preservar a vida. Se a eutanásia for aceita como um ato médico, os médicos e outros profissionais terão também por tarefa causar a morte. A participação na eutanásia alteraria o objetivo da atenção à saúde, assim como influenciaria, negativamente, a confiança no profissional de saúde. A Associação Médica Mundial, desde 1987, na Declaração de Madrid, considera a eutanásia como sendo um procedimento eticamente inadequado.

Vejamos a seguir os diferentes termos utilizados:

1) Distanásia: morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento. Alguns autores assumem a distanásia como sendo antônimo de ‘eutanásia’. A confusão pode surgir, sobretudo, se não nos perguntarmos à qual eutanásia se está fazendo referência. Se for entendido o significado literal dessas duas palavras quanto à sua origem grega, certamente têm significados antônimos. Porém, se for assumido o seu conteúdo moral, ambas convergem quanto à significação. Registre-se, entretanto, que tanto a eutanásia quanto a distanásia são tidas como eticamente inadequadas.

2) Ortotanásia: atuação correta frente à morte. Pode ser confundida com o significado inicialmente atribuído à eutanásia. A ortotanásia poderia ser associada, caso fosse um termo amplamente adotado, aos cuidados paliativos.

3) Mistanásia: eutanásia social. Leonard Martin sugeriu o termo para denominar a morte miserável, fora e antes da hora. Para o autor, a mistanásia funciona em três níveis: aqueles que não conseguem entrar no sistema de saúde; aqueles que ingressam e tornam-se vítimas de erros e negligências da equipe de saúde; aqueles negligenciados por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. Essa categoria, a da mistanásia, permite levar a sério, segundo Martin, o fenômeno da maldade humana.

Discussão filosófica e bioética

O compromisso com a defesa da dignidade da vida humana, na grande maioria dos casos, parece ser a preocupação comum que une as pessoas situadas nos diversos lados da discussão sobre eutanásia e distanásia. Isso não significa que há consenso sobre o que se entende por “compromisso com a defesa da vida humana”.

Neste capítulo, não pretendemos resolver todos os problemas que a dinâmica da tensão entre a eutanásia e a distanásia levantam. Pretendemos sim contribuir para um maior esclarecimento sobre o que significa falar acerca de uma morte digna e sobre os meios éticos necessários para alcançar este fim. Para tanto, precisamos identificar os problemas que a eutanásia e a distanásia querem resolver. O sofrimento da vida é um dos grandes desafios, que assume novos contornos neste início de milênio diante da medicalização da morte e do poder que as novas tecnologias dão à profissão médica para abreviar ou prolongar o processo de morrer. Essa situação complica-se ainda mais diante das mudanças verificadas no estilo de praticar a medicina. No Brasil, pode-se detectar pelo menos três paradigmas da prática médica: o paradigma tecnocientífico, o paradigma comercial-empresarial e o paradigma da benignidade humanitária e solidária. Cada um desses paradigmas influi na maneira de abordarmos a eutanásia.

Outro ponto importante a ser abordado é o da chamada eutanásia social, melhor caracterizado pelo termo proposto por Martin: ‘mistanásia’, a morte miserável, fora e antes da hora. A eutanásia busca uma morte boa e indolor, enquanto a mistanásia nada tem de boa ou indolor.

O terceiro ponto a ser abordado é o da eutanásia propriamente dita, ou seja, um ato médico que tem por finalidade acabar com a dor e a indignidade na doença crônica e no morrer, eliminando o portador da dor.

O quarto ponto é o que reflete um esforço em mostrar que rejeitar a eutanásia não significa necessariamente cair no outro extremo, a distanásia, onde a tecnologia médica é utilizada para prolongar penosa e inutilmente o processo de agonizar e morrer.

O quinto ponto, de trabalho do conceito de saúde como bem-estar, procura mostrar que não precisamos apelar nem à eutanásia nem à distanásia para garantir a dignidade do morre: trata-se da ortotanásia, como prática de respeito ao bem-estar global da pessoa. (RODRIGUES, 2010).

Os problemas que a eutanásia e a distanásia querem resolver

Ambas, a eutanásia e distanásia, lidam com a morte do ser humano e a melhor maneira de enfrentá-la. Enquanto aquela preocupa-se com a qualidade em detrimento da quantidade, esta preocupa-se com a quantidade em detrimento da qualidade. Ambas sempre abrem mão de algo.

A primeira grande questão é a da morte do ser humano e do sentido que essa morte representa. Até bem pouco tempo atrás a morte natural por velhice e por doença simplesmente faziam parte da nossa vida e muitas vezes fugiam do nosso controle. A morte violenta, por outro lado, vem sendo aperfeiçoada pela maldade humana e alcançou níveis de mortandade em massa jamais sonhados no passado. Muitos dos receios que surgem na discussão sobre eutanásia e distanásia refletem a consciência que se tem de tanta violência e o resultado do controle moderno sobre os processos ligados à chamada morte natural.

No período pré-moderno, o médico e a sociedade estavam bastante conscientes de suas limitações diante das doenças graves e da morte. Muitas vezes o papel do médico não era curar, mas sim acompanhar o paciente nas fases avançadas de sua enfermidade, aliviando-lhe a dor e tornando o mais confortável possível a vivência dos seus últimos dias. Os ritos médicos foram acompanhados de ritos religiosos, e tanto o médico como o padre tornaram-se parceiros na tarefa de garantir para a pessoa uma morte tranquila e feliz. (RODRIGUES, 2010).

Com o advento da modernidade, novas maneiras de praticar a ciência e novas atitudes e abordagens diante da morte e do doente terminal emergiram. O paradigma tecnocientífico da medicina se orgulha, com bastante razão, dos avanços obtidos nas ciências e na tecnologia biomédica. O orgulho, porém, facilmente se transforma em arrogância, e a morte, em vez de ser desfecho natural, transforma-se em inimigo a ser vencido ou presença incômoda a ser escondida.

Outro problema é o do paradigma empresarial-comercial. Com a tecnologia, os novos fármacos e equipamentos sofisticados são criados e têm um preço, por vezes, elevado. Esse estilo de medicina faz com que o médico deixe de ser um profissional liberal e vire um funcionário, nem sempre bem-remunerado, que atua em uma empresa-hospital. Nessa empresa, é a capacidade do paciente pagar a conta, não o diagnóstico, que determina sua admissão como paciente e o tratamento empregado.

O terceiro problema/paradigma é o da benignidade humanitária e solidária. Reconhecendo os benefícios da tecnologia e da ciência e a necessidade de uma boa administração econômica dos serviços de saúde, este paradigma procura resistir aos excessos dos outros dois paradigmas e colocar o ser humano como o valor fundamental e central na sua visão da medicina a serviço da saúde, desde a concepção até a morte. Ainda, rejeita a mistanásia, a eutanásia e a distanásia, promovendo nas suas práticas junto ao moribundo a ortotanásia: a morte digna e humana na hora certa.

Por fim, um grande problema é o da definição do momento da morte. Em muitos casos, não há nenhuma dúvida sobre o óbito, em outros, no entanto, a utilização de tecnologia sofisticada que permite suporte avançado da vida levanta a questão acerca de quando iniciar e quando interromper tal recurso. A aceitação da morte encefálica como critério, atende não só a demanda sobre quando parar o tratamento, mas também, a demanda de busca por órgãos para transplante.

A mistanásia: a “eutanásia social”

Seria a morte miserável fora e antes do seu tempo. A eutanásia, que em sua origem etimológica significa “boa morte”, não é a mais adequada para descrever o que significa a morte miserável. Por isso, os estudiosos preferem a palavra mistanásia, que não comporta qualquer significado de algo bom ou suave.

Na América Latina, de um modo geral, a forma mais comum de mistanásia é a omissão de socorro estrutural que atinge milhões de doentes durante sua vida inteira e não apenas nas enfermidades. Fatores geográficos, sociais, políticos e econômicos juntam-se para espalhar pelo nosso continente a morte miserável e precoce de crianças, jovens, adultos e anciãos.

É precisamente a complexidade das causas dessa situação que gera na sociedade um certo sentimento de impotência, propício à propagação da mentalidade “salve-se quem puder”. Planos de saúde particulares para quem tem condições de pagar e o apelo às medicinas alternativas tradicionais e novas por parte do rico e do pobre são, igualmente, dados sintomáticos de um mal-estar na sociedade diante da ausência de serviços de saúde em muitos lugares, do sucateamento dos serviços públicos e da elitização dos serviços particulares em outros. Numa sociedade em que recursos financeiros consideráveis não conseguem garantir qualidade no atendimento, a grande e mais urgente questão ética que se levanta diante do doente não é a da eutanásia ou distanásia, pois estas são possibilidades para aqueles que já conseguiram atendimento. A mistanásia por omissão é, sem dúvida, a forma de mistanásia mais espalhada pelo Terceiro Mundo. Há, porém, outras formas de mistanásia: a política nazista de purificação, bom exemplo de aliança entre política e ciência biomédica, a mistanásia das pessoas consideradas defeituosas ou indesejáveis, a pena de morte, todas essas categorias merecem uma análise mais profunda como formas de mistanásia, até certo ponto, aceitas na sociedade.

Outra forma de Mistanásia seria aquela relacionada ao erro da Equipe de Saúde (não só do Médico). O Código de Ética Médica fala de três tipos de erro médico: de imperícia, de imprudência e de negligência.

Um exemplo de imperícia é quando o médico deixa de diagnosticar em tempo hábil uma doença que poderia ser tratada e curada porque ele se descuidou da sua atualização e da sua formação continuada. Como manter-se atualizado sem dinheiro, ou, caso se tenha dinheiro, como fazê-lo sem tempo?

Mistanásia por imprudência pode ocorrer quando o médico executa qualquer tipo de procedimento sem consentimento prévio do paciente ou da família, pelo fato do paciente ser terminal ou crônico. Pode provocar um mal-estar mental e espiritual devido à perda de sua autonomia, tornando miserável o processo de morrer.

A mistanásia por negligência se faz no abandono do paciente terminal, aquele que é classificado como fora de possibilidades terapêuticas e abandonado pela equipe de saúde.

A eutanásia

A detalhada descrição da mistanásia nos ajuda, em meio a tanta confusão terminológica, a entender o que é e o que não é eutanásia. Essa definição é indispensável para poder emitir com serenidade um juízo ético fundamentado.

É pouco provável que os comportamentos que acabamos de caracterizar como mistanásia tenham seus defensores do ponto de vista da ética, mas a eutanásia continua sendo uma questão aberta. Torna-se importante, então, a discussão sobre o que é eutanásia, bem como, a distinção entre o valor moral, considerado objetivamente, que se pode atribuir a um ato eutanásico e a culpa ética ou jurídica que se pode atribuir a um determinado caso.

Uma grande diferença entre mistanásia e eutanásia é o resultado. Enquanto a mistanásia provoca a morte antes da hora de maneira dolorosa, a eutanásia provoca a morte antes da hora de maneira suave e sem dor. Não há dúvida de que existem, neste caso, elementos éticos e psicológicos implicadores: o direito de o doente crônico ou terminal ter sua dor tratada e, quando possível, aliviada; a preocupação em salvaguardar, ao máximo, a autonomia da pessoa e sua dignidade na presença de enfermidades que provocam dependência progressiva e a perda de controle sobre a vida e sobre as funções biológicas; e o próprio sentido que se dá ao fim da vida e à morte.

Se a eutanásia é tão desejável, como dizem seus defensores, por qual motivo há tanta resistência a ela por parte da deontologia médica e da teologia moral? Ambas debatem-se com o fato de que a eliminação da dor na eutanásia elimina também o portador da dor. Ou seja, no resultado da prática da eutanásia, percebemos dois elementos: a eliminação da dor e a morte do portador da dor. Quando se condena a eutanásia, não é o controle da dor que se está condenando, nem a defesa da dignidade da pessoa humana, mas sim, aquela parte do resultado que acaba matando a pessoa a fim de matar sua dor.

Boas intenções não levam, necessariamente, a bons resultados. Compaixão por aquele que sofre é, sem dúvida, um sentimento que enobrece a pessoa: quando essa compaixão tem como resultado o alívio da dor e a criação de estruturas de apoio que melhorem o bem-estar do doente terminal, estamos diante de uma postura eticamente louvável, quando, porém, essa compaixão leva a um ato médico que diretamente mata o paciente, acaba-se tirando da pessoa não apenas a possibilidade de sentir dor, mas também, qualquer outra possibilidade.

Uma ambiguidade que surge em relação à natureza da eutanásia é a de se ela é exclusivamente um ato médico ou não. Se os fatores decisivos na definição da eutanásia são o resultado (morte provocada, com eliminação da dor) e a motivação (compaixão), a palavra continua tendo uma conotação ampla. Nesta acepção, o ato de um marido que tira a vida da sua esposa que está morrendo de câncer e com dor intensa, poderia ser caracterizado como eutanásia. Se, porém, acrescenta-se outro fator à natureza do ato e a eutanásia passa a ser considerada um ato médico, a situação anteriormente mencionada passa a ser assassinato, sendo considerada homicídio por misericórdia ou suicídio assistido, dependendo da participação da vítima no processo.

É importante também a discussão sobre eutanásia em patologias que causam sofrimento, mas não ameaçam a vida e em patologias terminais. Se saúde significa a ausência de doenças e de enfermidades incapacitantes e se autonomia significa que a pessoa tem liberdade de morrer quando e como quiser, é difícil encontrar elementos para negar esse pedido. Se, porém, saúde tem outra conotação e autonomia se enquadra numa rede de sentidos e não é um critério de ação isolado, opções e alternativas podem ser cogitadas.

Quando se entende a saúde como bem-estar físico, mental, social e espiritual da pessoa, abre-se todo um leque de possibilidades para se falar da saúde do paciente crônico e promover seu bem-estar. À luz da reflexão de que uma condição que não ameaça a vida provoca angústia, a eutanásia é um procedimento inapropriado do ponto de vista da Ética. O que a situação requer não é investimento na morte e, sim, no resgate do sentido da vida.

Nos casos em que a terminalidade já se instalou, novamente o conceito de saúde com que se trabalha é decisivo para a proposta da eutanásia. Se a saúde significa a ausência de doenças e o paciente está em uma situação sem a possibilidade de cura, parece não haver saúde no paciente terminal e a eutanásia pode ser razoável. Se, porém, saúde é o bem-estar físico, mental e social, a promoção da saúde não consiste em cura, mas sim nos cuidados necessários para assegurar o conforto e o controle da dor. Muitas vezes não é o mal-estar físico e, sim, o mental que leva ao desejo da eutanásia.

A distanásia

A mistanásia e a eutanásia têm em comum o fato de provocarem a morte antes da hora. A distanásia envereda por outra direção, não conseguindo discernir quando intervenções terapêuticas são inúteis e quando se deve deixar a pessoa “abraçar em paz a morte” como desfecho natural de sua vida.

Enquanto na eutanásia a preocupação maior é com a qualidade da vida remanescente, na distanásia a tendência é a de se fixar na quantidade dessa vida.

A distanásia, ou encarniçamento terapêutico, é uma postura ligada especialmente aos paradigmas tecnocientífico e comercial-empresarial da medicina. Os avanços técnicos no tratamento das doenças levaram a medicina a se preocupar cada vez mais com a cura das patologias e, cada vez menos com o sentido tradicional da profissão, o de cuidar dos enfermos.

A questão ética é a seguinte: até quando se deve investir neste empreendimento de encarniçamento terapêutico? O atual código de ética médica tenta buscar uma mudança de paradigma, quando diz que o objetivo da medicina não é apenas prolongar ao máximo o tempo de vida da pessoa, mas também promover sua saúde como bem-estar físico, mental e social.

Dentro do paradigma científico, a justificativa para prolongar indefinidamente os sinais vitais é o valor absoluto da vida.

Dentro do paradigma comercial, ela tem sentido à medida que gera lucro para a empresa e para os profissionais. O tratamento continua até a morte ou o fim dos recursos financeiros. Dentro do sistema capitalista, há uma certa lógica, até sedutora, nessa prática, pois além de garantir o lucro, ela parece defender uma ética humanitária. Porém, a precariedade logo se manifesta: quando começam a faltar os recursos para pagar a conta.

A medicina tecnocientífica tende a resolver o dilema de enfrentar a morte caindo em um dos dois extremos: escolhe ou a eutanásia – ‘reconhecendo’ sua impotência – ou a distanásia, resistindo à morte até as últimas consequências.

A medicina paliativa, que atua dentro do paradigma da benignidade, operando com o conceito de saúde mais amplo, procura fornecer à pessoa uma morte sem dor, digna, na hora certa e rodeada de amor.

A visão ética procura abordar a questão afirmando que a vida e a saúde são bens fundamentais que permitem a conquista de tantos outros bens, mas não são bens absolutos. A vida nessa terra é finita e a morte é um fenômeno natural que pode ser domado, mas não evitado. O sentido que se dá ao viver e ao morrer é que é importante.

Na perspectiva da benignidade humanitária e solidária, o importante é viver com dignidade e, quando chegar a hora certa, morrer com dignidade também. (RODRIGUES, 2010).

Ortotanásia

É fácil perceber que uma mudança de paradigma se faz necessária, caso queiramos evitar os excessos da eutanásia e da distanásia.

Enquanto o referencial for a medicina predominantemente curativa, é difícil encontrar caminho que não pareça desumano, por um lado, ou descomprometido com o valor da vida humana, por outro.

Uma mudança importante advém do que compreendemos por ‘saúde’. A Organização Mundial da Saúde (OMS) insiste no significado mais amplo da palavra, que não apenas signifique ‘ausência de doenças’.

Dentro do horizonte da medicina curativa que entende a saúde, primordialmente, como a ausência de doença, é absurdo falar da saúde do doente crônico ou terminal, porque, por definição, ele não tem nem pode ter saúde. Porém, quando saúde é bem-estar físico, mental, social e espiritual, mesmo quando não há perspectiva de cura, saúde faz sentido.

O compromisso com a promoção do bem-estar do doente crônico e terminal permite-nos não somente falar de sua saúde, mas também desenvolver um conceito de ortotanásia, a arte de bem morrer, que rejeita toda mistanásia, sem, no entanto, cair nas ciladas da eutanásia e da distanásia.

Nesta perspectiva, a morte não é uma doença a curar, mas sim, algo que faz parte da vida. Nesse processo, o componente ético é tão importante quanto o técnico. Respeito pela autonomia passa a ser o direito de saber, de decidir, mas também, o de não ser abandonado, de ter a tratamento paliativo para amenizar o sofrimento, direito de não ser tratado como objeto, cuja vida possa ser encurtada ou prolongada segundo as conveniências da farmácia e da equipe médica.

Por fim, percebemos que neste nosso esforço para esclarecer os termos eutanásia e distanásia, introduzimos mais dois termos: mistanásia e ortotanásia.

O rosto do paciente cuja vida chega ao fim, não pode ser escondido em toda esta discussão, nem pode ser seu nome esquecido, pois quando isso ocorre é mais fácil despersonalizar o caso e tratar o paciente como objeto.

É claro que é mais fácil tratar a morte como algo puramente biológico, porém a morte do homem refuta tal redução, já que aspectos judiciais, sociais, psicológicos, culturais, religiosos e filosóficos estão sempre presentes.


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