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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

RACISMO E BIOÉTICA



Ginecologista diz à paciente que maioria das negras têm cheiro forte nas partes íntimas


https://revistaforum.com.br/direitos/2023/6/12/ginecologista-diz-paciente-que-maioria-das-negras-tm-cheiro-forte-nas-partes-intimas-137455.html


ARTIGO COMPLETO: https://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/view/7666/6325


A bioética e o racismoApesar da discriminação ser considerada ilegal, existem vários fatores que con-tribuem para a sua prática: as escolas são ambientes de segregação familiar; um endereço tem impactos profundos nas condições econômicas, sociais e de saúde; a construção político-ideológica de opressão racial de certos grupos; estruturas sociais, leis e práticas que reforçam o racismo; falta de justiça social na base das instituições (Parsi, 2016). Dentre as situações de racismo mais comuns, destaca-se que os jovens negros são os alvos mais constantes da violência policial; que discri-minações diversas ocorrem no sistema judiciário criminal, na forma de um maior número de prisão de afro-descendentes, exclusão dos negros de júri popular e existência de poucos advogados negros; a renda média dos negros é menor do que a de outros grupos em trabalhos idênticos; alta prevalência de pobreza entre os negros; crianças afro-descendentes mantêm uma taxa de baixo crescimento eco-nômico; segregação das áreas de habitação e de acesso ao ensino (Danis, Wilson, White, 2016). Segundo estudos, todos esses determinantes sociais têm impacto negativo na saúde da população negra, que apresenta maior nível de estresse e de depressão, além de desenvolver maior taxa de doenças crônicas e apresentar menor expectativa de vida (Taylor, Turner, 2002). Os problemas do racismo e da violência racial são complexos, multifatoriais e historicamente enraizados e alguns afirmam que, apesar de toda a carga moral que envolve a matéria, os bioeticistas não têm contribuído a contento para o enfrentamento do assunto, mesmo que a preocupação com a justiça social seja um dos maiores compromissos da bioética (Danis, Wilson, White, 2016). Para alguns, todo esse com-plexo ciclo de desvantagens sociais persistentes que assolam o negro está fora do campo de familiaridade da bioética. Outros, no entanto, defendem a existência de bases sólidas para se afirmar o contrário (Danis, Wilson, White, 2016). De acordo com o estudo de Danis, Wilson e White (2016), os que acreditam que a bioética tem agido de forma insuficiente no enfrentamento do racismo e da violência racial apontam que isso ocorre em razão das seguintes dificuldades: existe parco conhecimento acerca dos trabalhos desenvolvidos por escritores especialistas na filosofia africana; há uma necessidade de se familiarizar melhor com as evidências empíricas acerca da pobreza, racismo e violência racial, bem como dos efeitos físicos e psicológicos infligidos pela discriminação de raça; existe pouca compreensão sobre os efeitos de longo prazo do racismo em relação a uma juventude marginalizada, desajustada e que é vítima constante da violência policial; necessidade de conscien-tização acerca de vieses raciais e comportamentos usualmente presentes dentro e fora do cenário dos sistemas de saúde; a postura de mediador neutro do bioeticista é incabível em situações de desequilíbrio de poder; pouca experiência, necessidade de treinamento e engajamento multidisciplinar. Por outro lado, aqueles que reconhe-cem a contribuição da bioética para as questões relacionadas ao racismo destacam o seguinte: os bioeticistas são eticamente treinados não só para lidar com questões que envolvem pesquisas ou práticas clínicas, mas também com injustiças sociais 6

Paranhos. Rev Bras Bioética 2016;12(e5):1-11Artigo Originalpresentes nas políticas de acesso e distribuição dos cuidados em saúde; geralmente, os dilemas éticos mais contundentes e que afetam a saúde e o bem-estar dos grupos mais vulneráveis da sociedade encontram-se fora do cenário dos cuidados em saúde, por isso a formação bioética não se limita a esse aspecto; os determinantes sociais da saúde, preocupação que consta da agenda bioética, contribuem igualmente ou até mais do que os cuidados médicos para a saúde e bem-estar de pacientes; ao se falar em determinantes sociais da saúde, não se pode perder de vista as consequên-cias geradas pelo racismo. Assim, para Danis, Wilson e White (2016), ainda que o racismo ocorra fora do cenário da saúde, a atuação da bioética é essencial para a discussão da violência racial e do racismo institucional. No entanto, para que atinjam suas finalidades, os autores ressaltam que as práticas bioéticas devem ser revistas, a começar pelos métodos de ensino. Segundo eles, se a justiça é uma das maiores preocupações da bioética, esse compromisso deve refletir na obrigação de promover equidade em saúde e iguais oportunidades, por isso, o ensino da bioética deve debater as injustiças sociais que afligem a população afrodescendente, procurando entender essas dis-paridades que surgem e são mantidas. A bioética pode contribuir, ainda, se inteirando sobre os trabalhos filosóficos de estudiosos da cultura africana, inclusive se familia-rizando com as evidências empíricas relativas à pobreza, racismo e violência racial (o que deve ser transmitido aos alunos); combatendo os vieses raciais inconscientes que prevalecem nos ambientes de cuidados em saúde e que são perpetuados pela forma de educação médica; se engajando de forma mais ativa para obter mudanças comportamentais e institucionais; propiciando a presença de um número mais sig-nificativo de bioeticistas negros na Academia. Para Stone (2012), os princípios de solidariedade e os cuidados devem estar atre-lados ao respeito às pessoas e à justiça. A bioética, nesse ponto, pode e deve ser um parceiro atuante no que diz respeito ao racismo e à saúde, mediante a construção de uma rede de relações e a partir da aprendizagem com outras áreas, atravessando fronteiras e transformando as instituições, com humildade, persistência e paciência (Stone, 2016). Para enfrentar o racismo, os bioeticistas devem encarar sua ‘brancura’ e alargar seu papel primário de análise ética (compreensão) para um campo que envolva também ações e mudanças (Stone, 2016). ‘Brancura’, no caso, não se refere necessariamente ao tom de pele dos bioeticistas, mas se relaciona às normas culturais e ideológicas que determinam como a bioética deve ser praticada e quais princípios e contextos são considerados relevantes, ou seja, na formatação das estruturas algu-mas condutas são mais dominantes que outras, legitimadas pela alegada preocupação de não maleficência ou de segurança do paciente, mas nem sempre ligadas ao melhor interesse deste. Espera-se que a bioética seja um instrumento de empoderamento da parte mais fraca, mediante a educação das partes interessadas acerca das questões éticas envolvidas. Quando se falha no engajamento com questões morais diversas e contextos múltiplos, corre-se o risco de se inocular diferenças que contribuem para a manutenção de espaços de exclusão de minorias. É por meio de mudança cultural que a bioética pode ser parte da solução, e não do problema (Ho, 2016). 7

Paranhos. Rev Bras Bioética 2016;12(e5):1-11Artigo OriginalDe acordo com Sodeke (2016), algumas das habilidades da bioética podem ser usadas no enfrentamento do racismo e da violência racial, quais sejam: estudos e análises filosóficas; consultas éticas; ensino; políticas; habilidades investigativas para pesquisas empíricas; divulgação e treinamento. O autor acredita, no entanto, que, além disso, é preciso ter coragem moral para se aplicar as habilidades bioéticas na obtenção dos resultados desejados, mediante ações que transcendam o usual e o esperado. Um dos primeiros passos para se entender o racismo é nomeá-lo de forma contundente, ou seja, para que se discuta a posição do negro é preciso dizer o que o termo ‘negro’ significa, conforme o que ele realmente é, de modo que, ao ser compreendido, possa-se pensar em formas de eliminar os preconceitos e dis-criminações a ele atrelados. As ações dos bioeticistas devem, assim, refletir respostas morais duras às situações de racismo, a despeito das pressões e das resistências populares e das políticas de manutenção do status quo.Segundo Kuczewski (2016), quando confrontada com injustiças e arbitrariedades, tais como os sistemas de apartheid, a bioética deve fazer o que estiver ao seu alcance, razão pela qual a autoeducação e a educação de seus pares deve ser uma prioridade para que os bioeticistas estejam aptos a ajudar. Não existe fórmula, mas algumas habilidades trazidas pelo estudo da bioética podem ser de grande valia, como as habilidades particulares em pesquisa. Para o autor, a bioética deve ser uma aliada das pessoas que sofrem injustiças, uma voz que contribui ao acesso de iguais opor-tunidades a todos.O estudo apresentado por Karkazis, Mano e Edu (2016) se alinha à perspectiva de combate à necropolítica e ao sistema de governo privado indireto quando aponta que raça, racismo e violência racial fazem parte das operações de poder. Ressaltam que os incidentes de violência contra os negros são justificados pela supremacia branca, por meio de normas e instituições de poder, como forma de autodefesa, o que leva não só à perpetuação do racismo e da violência sancionada pelo Estado, mas permite que tal violência não seja vista como uma violência. Na verdade, o que se percebe não são interações inter-raciais tensas, mas a perpetuação de uma longa e duradoura luta pelo poder. Os autores afirmam que “[a]ddressing systemic racial disadvantages requires understanding that the maintenance and exercise of power relies on race, racism, and racist violence as embedded in our systems, frameworks, foundations, everyday practices, and methodologies, and how individuals and groups differently benefit from these” (Karkazis, Mamo, Edu, 2016, p. 25). Assim, para que os bioeticistas possam se engajar em ações antirracistas devem compreender primeiramente as nuances por meio das quais raça e racismo ensejam a continuidade de reprodução do poder. O próprio campo da bioética, por meio de suas práticas e das instituições a que se vincula, perpetua inequidades, pois suas estruturas de financiamento elegem as pesquisas que entendem prioritárias (e questões relativas à justiça racial não se enquadram dentre elas) e determinam a formação do conhecimento científico. Desde os tempos de escravidão até o colo-nialismo, o povo negro tem sido colocado fora da categoria de ser humano e isso 8

Paranhos. Rev Bras Bioética 2016;12(e5):1-11Artigo Originalpersiste até os dias de hoje. A bioética precisa ser crítica e reconhecer o perigo de reproduzir categorias raciais, por não entender ou por ignorar as maneiras pelas quais tais categorias são construídas nas relações de poder, especialmente no que diz respeito à dominação racial (Karkazis, Mamo, Edu, 2016).A bioética deve adotar uma abordagem interseccional no estudo e enfrentamento das complexas iniquidades, além de focar na questão da raça. A interseccionalidade estabelece correlação entre inequidades sistemáticas que criam e sustentam dis-paridades e põe em primeiro plano ativismo e transformação social como elementos que devem ser priorizados pela academia no sentido de se buscar justiça social para grupos vulneráveis e marginalizados (Grzanka, Brian, Shim, 2016).Toda essa discussão recentemente entabulada por autores norte-americanos sobre a necessidade de ampliação da agenda bioética para questões que vão além dos conflitos morais presentes na pesquisa e nas práticas clínicas, de modo a abarcar contextos sociais outros que influenciam a saúde e o bem-estar de populações desfavorecidas, já vem ocorrendo na América-Latina há algum tempo. O problema é que a colonialidade do saber/poder que ainda persiste no século XXI tem o condão de, não raras vezes, abafar as vozes dos países periféricos frente aos interesses dos países centrais.No Brasil, existem trabalhos que demonstram que a bioética e os estudos sobre a colonialidade são campos que se cruzam e que o diálogo entre eles reforça o escopo crítico da bioética, amplia seus fundamentos conceituais e contribui para sua maior politização (Nascimento, 2010). A bioética de Intervenção, por exemplo, é uma importante “ferramenta de denúncia, reflexão e busca de alternativas para a solução de problemas (bio)éticos que aparecem em um contexto típico das desi-gualdades registradas no Hemisfério Sul do mundo, especialmente na América-Latina, sobretudo os macroproblemas” (Nascimento, 2010, p. 57). Suas bases apoiam-se na luta contra o imperialismo moral e contra as situações persistentes de injustiças e iniquidades sociais (exclusão social, discriminação, violência, pobreza, acesso à saúde etc), sem perder de vista também as situações emergentes (avanços tecno-lógicos diversos), as quais são analisadas a partir da justiça social e voltada ao combate das desigualdades impostas pelo colonialismo e imperialismo (Garrafa e Porto apud Nascimento, 2010). A politização das questões morais ligadas ao racismo, nos moldes pregados pela bioética de Intervenção, ajuda a trazer à tona o invisível, o excluído, o marginalizado, o vulnerável, o oprimido e dá voz a uma população sem identidade, vítima das hierarquias de poder. “Uma perspectiva bioética é um modo de olhar o mundo da vida, seus conflitos e de pensar em soluções e alternativas a eles” (Nascimento, 2010, p. 58). A bioética é, de fato, um instrumento importante de combate ao racismo, em razão de seu potencial como instrumento de descoloniza-ção, a partir de discussões com movimentos sociais, por isso, é preciso fortalecê-la (Nascimento, 2010).9

Paranhos. Rev Bras Bioética 2016;12(e5):1-11Artigo OriginalCom efeito, não eliminamos o racismo, por isso é preciso continuar a luta em busca da celebração da alteridade, da abertura e da partilha, a partir de uma crítica política e ética do racismo. É necessário repartir o peso da história, trabalhar contra o passado, para que um futuro comum possa se abrir a todos. A reparação deve deixar de ser mobilizada apenas pelas vítimas da história, ou seja, deve-se, de um lado, abandonar o papel de vítima, mas de outro lado, deve-se impulsionar o opressor a assumir responsabilidades, articulando-se, assim, uma nova ética e uma nova política, voltadas à justiça (Mbembe, 2014). Assim, o primeiro passo para a igualdade social é reconhecer que o negro é “[s]implesmente um homem entre outros homens” (Fanon apud Mbembe, 2014, p. 297).


Referências1.Danis M, Wilson Y, White A. Bioethicists can and should contribute to addressing rac-ism. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 3-12.2.Grzanka PR, Brian JD, Shim JK. My bioethics will be intersectional or it will be [bleep]. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 27-29.3.Ho A. Racism and bioethics: are we part of the problem? The American Journal of Bio-ethics 2016; 16(4): 23-24.4.Karkazis K, Mamo L, Edu U. Keeping an eye on power in maintaining racial oppression and race-based violence. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 25-27.5.Kuczewski M.The really new Jim Crow: why bioethicists must ally with undocumented immigrants. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 21-22.6.Mbembe A.Necropolítica. Madrid: Mesulina, 2011.7.Mbembe A. Crítica da razão negra. Portugal: Antígona, 2014.8. Nascimento WF. Por uma vida descolonizada: diálogos entre a bioética de intervenção e os estudos sobre a colonialidade (tese). Brasília: Universidade de Brasília; 2010.9.9. Parsi K.The unbearable whiteness of bioethics: exhorting bioethicists do address racism. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 1-26.10.Sodeke S. Bioethics skill sets can work, but it would take moral courage to apply them and get desired results. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 19-20.11.Stone J.Elderly & older racial/ethnic minority healthcare inequalities: care, solidarity, and action. Cambridge Quaterly of Healthcare Ethics 2012; 21: 342-52.12. Stone J.Racism and bioethics: experiences and reflections. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 13-35.13.Taylor J, Turner RJ. Perceived discrimination, social stress, and depression in the transi-tion to adulthood: racial contrasts. Social Psychology Quaterly 2002; 65(3): 213-25.Recebido em: 22/08/2016 Aprovado em: 10/11/2016.1. Danis M, Wilson Y, White A. Bioethicists can and should contribute to addressing rac- ism. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 3-12.2. Grzanka PR, Brian JD, Shim JK. My bioethics will be intersectional or it will be [bleep]. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 27-29.3. Ho A. Racism and bioethics: are we part of the problem? The American Journal of Bio- ethics 2016; 16(4): 23-24.4. Karkazis K, Mamo L, Edu U. Keeping an eye on power in maintaining racial oppression and race-based violence. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 25-27.5. Kuczewski M. The really new Jim Crow: why bioethicists must ally with undocumented immigrants. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 21-22.6. Mbembe A. Necropolítica. Madrid: Mesulina, 2011.7. Mbembe A. Crítica da razão negra. Portugal: Antígona, 2014.8. Nascimento WF. Por uma vida descolonizada: diálogos entre a bioética de intervenção e os estudos sobre a colonialidade (tese). Brasília: Universidade de Brasília; 2010.9. Parsi K. The unbearable whiteness of bioethics: exhorting bioethicists do address ra-cism. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 1-26.10. Sodeke S. Bioethics skill sets can work, but it would take moral courage to apply them and get desired results. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 19-20.11. Stone J. Elderly & older racial/ethnic minority healthcare inequalities: care, solidarity, and action. Cambridge Quaterly of Healthcare Ethics 2012; 21: 342-52.12. Stone J. Racism and bioethics: experiences and reflections. The American Journal of Bioethics 2016; 16(4): 13-35.13. Taylor J, Turner RJ. Perceived discrimination, social stress, and depression in the tran-si- tion to adulthood: racial contrasts. Social Psychology Quaterly 2002; 65(3): 213-25.11

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