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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

RELIGIÃO E SAÚDE

Atualizado: 17 de ago. de 2023

Texto base para análise bioética da relação entre religião e saúde.



A ponte entre os terreiros de matriz africana e o Sistema Único de Saúde

Recentemente, o Conselho Nacional de Saúde reconheceu os terreiros como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS... Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-ponte-entre-os-terreiros-de-matriz-africana-e-o-sistema-unico-de-saude.


Reflexões sobre a relação entre sistemas de crenças e terapêuticas tradicionais:O caso do Xamanismo.


https://e-revista.unioeste.br/index.php/tempodaciencia/article/view/8983/6582


RESUMO: Este artigo se apresenta no âmbito das pesquisas que analisam a estreita relaçãoentre Saúde e Cultura; entre sistema de crenças e práticas terapêuticas tradicionais, no casodo Xamanismo. A pesquisa encontra-se inserida no campo das investigações antropológicascom foco em Saúde Indígena, buscando melhor entender a complexa integração existenteentre sistema cosmológico e terapêutico xamânico, bem como sinalizar elementosfundamentais que dificultam o diálogo entre as práticas xamânicas, a medicina modernaocidental e as políticas públicas de saúde indígena. Sem pretensão de apresentar uma teoriageral sobre as diversas práticas xamânicas, este artigo revê alguns trabalhos e extrai algumasreflexões sobre o fenômeno xamânico, corroborando a importância de suas concepçõesculturalmente particularizadas de doença e cura. O artigo visa apresentar a complexidade doproblema e o desafio (e tem sido já sentido) para a implementação da Política Nacional deAtenção à Saúde dos Povos Indígenas integrada ao Sistema Único de Saúde



PAIS DE MENINA QUE FALECEU SEM TRANSFUSÃO SANGUÍNEA VÃO A JURI POPULAR - TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.


https://www.estadao.com.br/noticias/geral,pais-de-menina-morta-sem-transfusao-vao-a-juri-imp-,641983




TRANSFUSÃO DE SANGUE E TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.


TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.



Questões religiosas envolvendo atos de profissionais da saúde é mais comum do que imaginamos. Inúmeras vezes familiares ou pacientes sentem-se constrangidos por utilizarem um referencial religioso para orientar sua tomada de decisão. Talvez o caso mais conhecido sejam as transfusões de sangue em Testemunhas de Jeová.

Essa questão é uma das mais polêmicas conhecidas em Bioética, envolve um confronto entre dados objetivos com uma crença, entre um benefício médico e o exercício da autonomia do paciente. Podemos chamar essa situação de não-consentimento informado.

A fundamentação religiosa para tal atitude encontra-se em textos bíblicos:

1 - Livro do Genêsis (9: 3-4)

" Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma - seu sangue - não devéis comer."


2 - Levítico (17:10).

"Quando qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo."


Já existem diversos livros e artigos sobre o tema. A maioria divide a questão entre pacientes capazes de tomar decisões e os pacientes incapazes.

O paciente capaz deve poder exercer sua autonomia plenamente. Diego Gracia utiliza essa situação como paradigma no exercício da autonomia do indivíduo.

Para alguns autores, como Genival Veloso de França, o posicionamento se mantém válido apenas enquanto não houver risco para a vida do paciente. Em caso de risco de morte iminente o médico estaria autorizado a transfundir o paciente, mesmo contra a vontade, com base no princípio da beneficência. A vida seria sempre um bem maior e é dever Prima Facie do médico mantê-la, sobrepujando a autonomia.


O CEM de 1988 adotava essa posição, porém, desde a revisão de 2009 o posicionamento mudou, pois a autonomia do paciente passou a ser valorizada.


Seguindo o preceito constitucional de 1988, todo cidadão tem direito à liberdade de crença, sendo assim, a jurisprudência brasileira tem se orietado nessa direção de defesa da autonomia.


Quando a situação envolve menores ou incapazes (acidente) a situação ganha outras conotações, pois a obrigatoriedade de proteger o paciente vai além do poder parental. Complica-se mais ainda quando se trata de adolescentes, eles podem ser equiparados aos adultos na questão de opção religiosa? O estatuto da criança e do adolescente garante a liberdade de culto em seu artigo 17. Normalmentea equipe de saúde solicita, através, da procuradoria da infância e da juventude a autorização para o procedimento, através da suspensão temporária do pátrio poder.


No caso de pacientes menores de 12 anos, especialmente bebês, a proteção a vida prevalece sobre a crença manifestada pelos pais. Todo esse processo deve ser comunicado aos pais e que a equipe busca os melhores interesses da criança. Registra-se sempre em prontuário a decisão dos pais e as ações da equipe no sentido de proteção da vida.


Importante estar ciente de que os conflitos podem atrapalhar a relação com o profissional da saúde e, em casos necessários, pode-se transferir o paciente para um profissional que sinta-se mais preparado para lidar com essas questões.


As testemunhas de Jeová possuem grupos de apoio e unidades médico-hospitalares que podem auxiliar nos casos complexos.


Referências:


1 - As testemunhas de Jeová e a questão do sangue. Tatuí, SP. Torre de Vígis. 1977: 4-8.


2 - França GV. Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1994: 50-51.


3 - Dunn HP. Ethics for doctors, nurses and patients. New York: Alba House, 1994: 131-132.



RELIGIÃO E SAÚDE.


Nem todo nosso conhecimento técnico consegue responder o que é o homem. É impossível, do ponto de vista ético, querer conhecer, dissecar ou reduzir o homem à sua porção biológica. Nós transcendemos a porção biológica, e cada ser é um Outro, incapaz de ser apreendido em códigos, leis, decretos ou conceitos, já que estes - os conceitos - sempre buscam ser eternos e, o homem, não existe fora de sua terminalidade e temporalidade. Para que nossa existência tenha sentido nessa temporalidade muitas vezes torna-se necessário uma outra dimensão: a religiosa.

Ainda que possuam diversas maneiras de se manifestarem, as religiões possuem um ponto em comum: a crença em Deus ou em Deuses. Este ou Estes, seriam os autores da vida, assim, toda ação humana de defesa e promoção da vida parte de um querer divino.

Uma questão fundamental é a seguinte: O que os humanos querem dizer quando falam "Deus"? Por que as culturas, desde sempre, colocam em cena o tema Deus?

Mesmo as culturas politeístas, na interpretação inaugurada por C. G. Jung e por Campbel, não seriam proponentes da multiplicidade de divindades, mas da de múltiplas formas de presença divina na natureza e na vida humana. As divindades não são seres subsistentes, mas representam energias poderosas e criativas para as quais nos faltam as palavras adequadas para descrição. Então, usam-se nomes divinos e mitos (WARD, 2009).

Todos os grandes representantes do pensamento ocidental, sem esquecer seus paralelos orientais, detidamente se enfrentaram com a problemática de Deus. Porém, o momento-chave dessa compreensão da religião e de Deus é a grande ruptura que ocorreu entre o pensamento clássico greco-cristão para o qual Deus representava a eternidade, a imutação e a pura transcendência e o pensamento moderno que entende a realidade como mutação e evolução, carregada de virtualidades apontando para várias direções.

Para Leonardo Boff, a figura de Hegel é especialmente estudada porque foi ele que introduziu Deus na história, ou melhor, fez da história a forma como Deus se mostra (tese), se autonega (antítese), entrando nos avatares da condição temporal, e retorna sobre si mesmo carregando toda a riqueza de sua passagem pela evolução (síntese). Sua essência como Espírito absoluto é ser dinamismo, mutação, liberdade e criação. Vê no próprio conceito cristão da Trindade, a dialética divina da história: o poder auto-afirmativo que se mostra como Pai, a sabedoria que se revela como Filho e o amor unitivo que se concretiza como Espírito Santo (Boff, 2010). As implicações linguísticas e filosóficas que a temática de Deus encerra, vão desde o discurso raso do fiel que identifica imagem de Deus com Deus mesmo, passando pelo discurso analógico dos teólogos para os quais os conceitos são meras analogias e não descrições do ser divino, até o silêncio reverente que sabe ser impossível dizer qualquer coisa objetiva sobre Deus (Ward, 2009). Famosa é esta frase de um dos maiores teólogos cristãos, o Pseudo-Dionísio Aeropagita (século VI): "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe." É a linguagem dos místicos, seja dos muçulmanos como os sufis, seja da sabedoria dos taoístas, seja dos místicos cristãos, que afirmam que sobre Deus dizemos mais mentiras do que verdades. Por isso, vale a advertência do filósofo Ludwig Wittgenstein: "Sobre coisas que não podemos falar, devemos calar". É o que as religiões e igrejas menos fazem.

Mas nem por isso deixamos de permanentemente abordar o tema ‘Deus’. Seguindo a tradição pragmática inglesa, Ward enfatiza que, em vez de perguntarmos o que a palavra "Deus" representa, deveríamos questionar acerca de "como a palavra Deus é usada". Ela está na boca e nas atitudes dos que oram, cantam e meditam. Essa é uma forma de se relacionar com o Inefável e, a partir dele, com o mundo. A consequência prática é a de que ocupar-se com Deus libera o eu do desespero e da ilusão e possibilita atingir certa integração que gera a felicidade, completando o ser humano em todas as suas dimensões. Para Boff, pensar Deus não é nunca um mero exercício intelectual, é pensar a forma mais adequada de vivermos como seres humanos, compreendermos melhor o mundo e conectarmo-nos com aquela Energia soberana e boa que tudo pervade e penetra nas profundezas de cada um (BOFF, 2010).

Há um evidente desenvolvimento da ciência e da técnica na atualidade, o que demanda do Homem novas respostas, novas ações. O problema é que esse desenvolvimento prometeu resolver as angústias da humanidade como espécie mas para isso abriu mão do divino. Agora que percebemos que nem todo nosso desenvolvimento técnico encontrou uma resposta, mas, diferentemente, fragmentou o homem, impedindo-o de conhecer-se por inteiro, inclusive em sua feição sobre-natural, para onde vamos fugir? Pior, o desenvovimento incontrolável, sem qualquer freio ético, sequer o da religião, que coloca em risco outras espécies e mesmo a nossa, não seria uma pretensão de onipotência e soberba de uma humanidade sem fé no sobre-natural?

Formação do profissional de saúde e religião

A formação dos médicos e demais profissionais de saúde é extremamente vinculada ao conhecer técnico. O conhecimento ético ou de outras disciplinas humanas perdeu espaço para o desenvolver de um profissional puramente centrado no saber científico de cunho positivista.[1]

Independentemente do credo religioso, a percepção desse “além do físico” pelo homem poderia contribuir para a formação médica e dos profissionais de saúde.

Um interessante estudo sobre a questão da saúde é o do médico e escritor brasileiro Moacyr Scliar, intitulado: História do Conceito de Saúde, no qual expressa o seguinte:

O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Dependerá de valores individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das doenças. Aquilo que é considerado doença varia muito (SCLIAR, 2007).

Segundo a Organização Mundial de Saúde, saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade. Nesse contexto, percebe-se que saúde não significa ausência de doença, que saúde não se limita apenas ao corpo, inclui também a mente, as emoções, as relações sociais, a coletividade, existindo a necessidade de envolvimento de outros setores sociais (religiosos por exemplo) e da própria economia para que as pessoas possam de fato ter saúde.

A relação entre saúde e religião é alvo de estudos e análise há muitos anos, inclusive de estudos que seguem parâmetros de avaliação totalmente científicos, como é o caso do de Hummer, que avaliou dados do National Health Interview Survey e constatou que, para os 21.204 casos avaliados, os pacientes que nunca tiveram ou que nunca exerceram uma prática religiosa regular, apresentavam risco de óbito 1,87 vezes maior do que as pessoas que praticavam atos religiosos ao menos uma vez por semana (Hummer apud RIBEIRO, 2011).

A fé surge como importante mecanismo de esperança para os pacientes, sejam eles graves ou não, como nos mostra o Trabalho de Conclusão de Curso em Enfermagem das autoras Silva e Costela (2011): “[...] no enfrentamento das dificuldades vivenciadas ao se tornar ostomizado, o paciente precisa de um tempo para rever seus conceitos, organizar ideias e encontrar força para aceitar seu momento, muitas vezes busca este auxílio na sua fé”. A afirmação corrobora o pensamento de Levi-Strauss, para o qual, não há razão que justifique duvidar da eficácia de certas práticas mágicas, pois a eficácia da magia implica a crença da magia, crença por parte de quem pratica, por parte do doente e por parte do consenso.

Discussão filosófica

“Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”, diz-nos Voltaire, um dos maiores pensadores, combatente ferrenho da intolerância e do fanatismo religioso, nem por isso, ateu.

Muitas pessoas concordam com a ideia propagada de que “religião não se discute”. De fato, não se discute a convicção de cada um, mas é possível entender o significado das religiões e da busca constante do sentido da vida pelo ser humano. Com base em registros históricos, sabe-se que o ser humano se relaciona com a dimensão divina há milhares de anos.

Voltaire condena claramente as lutas religiosas quando afirma que “esta terrível discórdia, que perdura há tantos séculos, constitui a lição bem expressiva que devemos perdoar-nos mutuamente os nossos erros; a discórdia é o grande mal do gênero humano e a tolerância seu único remédio” (VOLTAIRE, 1973). Mais que uma reflexão analítica, a participação de Voltaire na construção da tolerância como valor moral se deve à sua radical defesa da condição humana. Ele diz que devemos nos tolerar porque somos fracos, inconsequentes e sujeitos ao erro e à mutabilidade. Em virtude disso, a religião torna-se necessária em qualquer lugar que houver uma sociedade estabelecida, pois enquanto, de um lado, as leis reprimem os crimes conhecidos, do outro, a religião se encarrega dos crimes secretos. Ao menos, essa é a opinião de Voltaire. Porém, embora a religião possa ser esse freio, o filósofo francês adverte que: “Um homem que recebe sua religião sem exame não difere de um boi que atrelam”.Para Voltaire, devemos examinar nossa crença e não nos deixar guiar por fanatismos.

Um dos grandes problemas da religião, sobretudo, para quem convive com a dor e o sofrimento de seres inocentes (crianças, idosos, vítimas de acidentes), é o do entendimento acerca da seguinte questão: como Deus permite que tudo isso aconteça? Na tentativa de entender essas catástrofes, Voltaire questiona a Grandeza de Deus, já que Ele não poupa nem os inocentes. O autor tenta compreender a bondade divina que permitiu a existência do mal. Epicuro é citado em sua exortação ao terrível terremoto de Lisboa (que teve suas consequências agravadas por devastador incêndio, provocado pelas velas acesas nos altares das Igrejas) ao concluir que, ou Deus quis impedir o mal e não pôde, ou pôde e não quis, ou nem quis e nem pôde. Mas, se quis e não pôde, não é Deus; se pôde e não quis não é bom, o que é contrário a Deus. “Se quer e pode, o que é a única coisa compatível com a divindade, qual é a origem de todos os males?“ questiona Epicuro.

Do outro lado, em resposta à Voltaire, aparece Rousseau, que publicou uma carta, a “Lettre Sur La Providence”, inocentando Deus e a natureza de toda culpa. Rousseau prefere atribuir a culpa aos homens, processo que resulta numa visão bastante moderna do problema dos terremotos. Como bem observa o autor, não foi a natureza que, numa área relativamente pequena, reuniu 20.000 casas, algumas com seis andares, a encontrarem-se assim todos amontoados às margens do rio Tejo. Se vivessem mais dispersos, mais afastados uns dos outros, provavelmente o desastre seria bem menor. Além disso, “[...] quantos infelizes pereceram neste desastre porque quiseram pegar, uns as suas roupas, outro, sua papelada, outro, seu dinheiro?” (ROUSSEAU, 1995).

Embora pareça óbvio que as consequências de um terremoto sejam inseparáveis do tipo de sociedade na qual ocorre o desastre, tratava-se de uma ideia totalmente nova no século XVIII.

Não cabe neste livro, a pretensão de encontrar a solução para esse dilema, ficando à vontade do leitor aprofundar a busca por tal resposta. Lembra-se, entretanto, que se o ser humano é um ser biológico, também é o único capaz de produzir discussões metafísicas acerca da magnitude há pouco referida.

Bioética e religião

“O Estado é laico, secular e diverso onde o pensamento religioso é parte. O Estado não é ateu” (Prof. Dr. Mario Antônio Sanches – em sala de aula).

A grande questão bioética envolvendo a religião é a do fato concreto de que algumas crenças possuem conceitos que interferem no agir da equipe de saúde. Essas crenças variam desde a negação de algum tratamento (caso das Testemunhas de Jeová) à negação da própria doença (possessão demoníaca como causa). Como lidar com isso, sobretudo, quando o paciente é atendido em hospital público em que sabidamente o Estado é laico? Torna-se claro que os aspectos envolvidos vão além das questões legais e do discurso jurídico.

De uma maneira geral, o atendimento aos doentes faz parte da religião e da função sacerdotal, muitas vezes atribuindo-se essa qualidade, de sacerdote, ao próprio médico e à profissão médica. Vejamos o que diz a Pastoral da Saúde na América Latina e Caribe no texto base da campanha da fraternidade de 2012:

A Igreja em sua missão profética, é chamada a anunciar o Reino aos doentes e a todos os que sofrem, cuidando para que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados, assim como denunciar o pecado e suas raízes históricas, sociais, políticas e econômicas, que produzem males como a doença e a morte. A vida saudável requer harmonia entre corpo e espírito.

Aqui vemos que a participação da(s) Igreja(s) vai muito além da questão da saúde, como não poderia deixar de ser, já que trata-se de uma instituição composta por seres humanos e mergulhada na sociedade. Com relação ao ponto de vista da área da saúde e sua participação nas discussões bioéticas, as religiões possuem voz extremamente ativa, sobretudo os centros católicos de pesquisa em Bioética. Sendo assim, sua opinião deve ser levada em consideração no debate. Qual, pois, seria essa opinião?

A Igreja, em nome de Cristo e do Evangelho, não tem o direito de ficar calada! Profeticamente ela aponta para os pecados cometidos contra a dignidade humana, ao mesmo tempo em que assume, junto com toda a sociedade, a luta por um sistema de saúde que beneficie a todos e tenha qualidade. (Pe. Cristovam Lubel).

E, “A perspectiva cristã, mais do que qualquer outro sistema de crença, fornece uma sólida fundamentação para a construção de um sistema de saúde baseado na solidariedade, fraternidade, igualdade e justiça social: um sistema de saúde que abarque todos, ricos e pobres; deficiente e sãos”(Léo Pessini, Professor Doutor em Bioética e sacerdote camiliano).

Um dos dilemas mais conhecidos entre religião e saúde é o das Testemunhas de Jeová, embora não seja o único, também sabe-se da sua negação à aceitação de sangue e derivados. Alegar um impedimento religioso para a realização de um ato médico é mais frequente do que imaginamos e carrega muitas vezes a vergonha do paciente e/ou dos seus familiares em utilizarem esse referencial – o da religião – como orientador da tomada de decisão, o que só piora mediante uma postura da equipe de saúde detentora da verdade científica e que não pode aceitar outra forma de conhecimento que não a sua.

Essa negação da transfusão pelas Testemunhas de Jeová envolve um conflito entre um dado objetivo com uma crença, um benefício médico e o exercício da autonomia do paciente. Os pacientes que professam o credo das Testemunhas de Jeová, embasam suas afirmações na interpretação de textos bíblicos:

1) No livro dos Gênesis (9:3-4), está escrito: “ Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma – seu sangue – não deveis comer”.

2) No Levítico (17:10): “ Quanto qualquer homem da casa de Israel ou algum forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo”.

Já existe uma farta bibliografia bioética a respeito dessa questão. A maioria divide-a em duas abordagens básicas: o paciente capaz de decidir moral e legalmente e o paciente incapaz de fazê-lo. O paciente reconhecidamente capaz deve poder exercer a sua autonomia plenamente. Esse posicionamento foi utilizado pelo Prof. Diego Gracia, que utiliza essa situação como paradigmática no exercício da autonomia do indivíduo mediante pressões sociais. É uma posição corajosa, mesmo que questionável por outras pessoas que não compartilham dessa mesma crença. Outros autores questionam esse posicionamento, alegando que ele só seria válido quando não houvesse risco de morte iminente associado ao estado do paciente. Quando houvesse esse risco, o médico estaria autorizado a transfundir o paciente, mesmo contra a vontade deste, com base no princípio da beneficência. A vida seria sempre um bem maior e é dever prima facie do médico preservá-la. Esse posicionamento é respaldado pelo próprio Código de Ética da profissão, que menciona, em seu artigo 46: “É vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente risco de vida”. E, no artigo 56, tem-se: “É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de vida”.

A restrição à realização de transfusões de sangue pode gerar no médico uma dificuldade em manter o vínculo adequado com o seu paciente. Ambos têm diferentes perspectivas sobre qual a melhor decisão a ser tomada, caracterizando-se um conflito entre a autonomia do médico e a do paciente. Uma possível alternativa de resolução desse conflito moral é a de transferir o cuidado do paciente para um médico que respeite tal restrição de procedimento.

Os seguidores dessa denominação religiosa “Testemunhas de Jeová” estão muito bem organizados para auxiliarem as equipes de saúde no processo de tomada de decisão. Existem Comissões de Ligação com Hospitais, que são constituídas por pessoas que se dispõem a ir ao hospital prestar assessoria visando ao melhor encaminhamento possível do caso. A Comissão de Ligação de Hospitais dispõe, inclusive, de um cadastro de médicos que pode ser útil em tais situações.

[1] Ver Considerações Finais.

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