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Foto do escritorCarlos Frederico de Almeida Rodrigues

RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

Atualizado: 16 de mar. de 2023

Reflexões filosóficas sobre a relação entre médico e paciente.




MULHER É ACUSADA CRIMINALMENTE DE ABORTO PELO PRÓPRIO MÉDICO.






A relação do médico com seu paciente é sem dúvida alguma o protótipo da relação ética (RODRIGUES, 2010), pois coloca face-a-face dois estranhos que não possuem obrigação alguma entre si (algo que hoje já está mudando, com a transformação da medicina em uma relação de contrato), com exceção da necessidade de construir um sentido no exato momento em que a vida parece demonstrar ser desprovida de um. O paciente, que é retirado de seu mundo autorreferente e jogado na incerteza da alteridade absoluta (morte), sem dúvida possui uma necessidade de ressignificar e obter novamente um sentido para sua vida. O médico que se dispõe a ajudá-lo jamais pode olvidar que a ajuda é mais do que técnica, é responsabilidade do médico reconstruir o significado da vida do paciente e da sua própria, afinal, a morte do Outro é a única possibilidade de vivenciarmos a morte, já que a nossa sempre vai nos depor da condição de sujeito atuante.

Essa relação é a relação ética por excelência por fazer surgir a necessidade de construção de um sentido entre dois estranhos que se entregam mutuamente, o paciente aos cuidados do médico, o médico ao grito de ajuda de seu paciente. Essa relação não deveria ser pautada por ganho ou retribuição; se o é, deixa de ser ética, visa a uma remuneração – financeira ou emocional – e cria a necessidade de reciprocidade, o que pode influir negativamente na relação ética, que não poderia ser controlada pelos sujeitos atuantes, garantindo uma atitude desinteressada e ética. Infelizmente, a relação médico-paciente, como todas as relações sociais e humanas, vem sofrendo influência do que em bioética chamamos de ´judicialização` das relações: toda ação médica passa a ser conforme um contrato pré-estabelecido e com vistas a se proteger de uma futura ação judicial, o que não só encarece a medicina (enorme quantidades de exames desnecessários), mas também acaba com a possibilidade de procura de um sentido pelos sujeitos atuantes. Por outro lado, o paciente, que é um ser humano inserido em uma sociedade cada vez mais hedonista e incapaz de lidar com a frustração, exige em uma ciência de meios e não de fins a certeza matemática e controladora que deseja a imortalidade e o não sofrimento, sem compreender que esses fazem parte da própria existência humana. Nas palavras de Pascal, que escreveu à sua irmã que se preocupava com sua doença: “Tu não conheces as vantagens da enfermidade e as desvantagens da sanidade” (Pascal apud RODRIGUES, 2010).

Relação médico-paciente como contrato

No dia 10 de novembro de 1677 (12 de Shaban de 1088), em Trípoli, região pertencente atualmente ao Líbano mas à época território da Síria, que estava sob o império Otomano, um paciente assinou um documento sobre o procedimento cirúrgico a que iria ser submetido, estabelecendo uma série de condições e critérios para diferentes situações, incluindo o pagamento e os cuidados pós-operatórios.

Aquele tipo de documento/contrato é o antecessor dos atuais Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. O contrato referido estabelecia claramente que nem o cirurgião nem os seus descendentes teriam, no caso de morte do paciente, qualquer responsabilidade ou obrigação financeira. Na realidade, era um termo de isenção de responsabilidades.

A necessidade de ´consentimento consciente´ é mais do que isso. Em teoria, vai além de um simples direito de informação a respeito de riscos (como no caso de um consumidor). Ao tratar de um paciente, o médico o está ajudando a exercer seu direito fundamental à saúde e, por essa perspectiva, o paciente tem um outro direito fundamental: o de participar da tomada de decisões. Passaria não por um simples direito de defesa – direito do paciente de que o médico não faça alguma coisa contra ele – ou a uma prestação em sentido estrito – direito do paciente de que o médico faça uma determinada coisa para ele, seria um direito fundamental a uma prestação em sentido amplo, no âmbito da relação privada entre o médico e o paciente. A participação no processo envolve conscientização, pressupõe que o médico valorize a capacidade de o paciente contribuir. Pressupõe um diálogo.

Em função disso, embora normalmente os profissionais médicos procurem resguardar-se da possibilidade de serem processados simplesmente obtendo um documento que demonstra que transmitiu informações ao paciente, parece-me que o ideal é que esse documento também demonstre que o paciente transmitiu informações ao médico.

Diversos questionamentos foram levantados com relação ao Consentimento Livre e Esclarecido, argumentos filosóficos (sobre a existência de uma verdadeira autonomia), práticos (como acordar o Consentimento com pacientes analfabetos?) e de outras naturezas. Um exemplo claro nos vem de Jean Bernard (professor da faculdade de medicina de Paris, ex- presidente da academia francesa de ciências):

De forma geral, para todas as novas tentativas de diagnóstico ou de tratamento se coloca a questão do consentimento esclarecido do doente. [...] 2 jovens de 20 anos, um com diabetes, que sabe tudo sobre sua doença, esse deverá ser muito bem informado, ao se propor um teste com um novo medicamento. O segundo com leucemia e o médico lhe diz que vai morrer em 6 meses e que há um novo medicamento que poderá provocar efeitos colaterais precoces ou prolongar sua vida por 3 meses, se poderia autorizar os testes após ser esclarecido? Qual é o valor de um consentimento assim obtido? A noção de consentimento esclarecido pede seguramente novas análises e novas reflexões (BERNARD, 1997).

Com os analfabetos, poderíamos utilizar a leitura para o paciente na frente de testemunhas, mas apresenta-se o problema da autonomia: é autônomo o paciente que precisa de testemunhas, que normalmente são membros da família, ou seja, possuem influência em sua decisão e participam do processo de assinatura do termo de consentimento? Esse problema existe também para os não analfabetos, já que a exigência de testemunhas se faz também nesse caso. Outra solução possível seria gravar a entrevista, aí surgem problemas como: onde ficariam arquivadas? Quem teria acesso? Confidencialidade é um dos grandes problemas dos nossos hospitais, os prontuários, por exemplo, são acessíveis a um número enorme de pessoas não vinculadas diretamente ao cuidado do paciente: faxineiros, copeiros, zeladores etc. Não aconteceria o mesmo com as gravações?

Na tentativa de normatizar os termos de Consentimento Livre e Esclarecido, membros da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Federal de Medicina (CFM) – um foro multidisciplinar composto por representantes das áreas de Medicina, Direito, Filosofia, Enfermagem, Bioética, Psicologia etc. – estudam a elaboração de recomendações para o "termo de consentimento livre e esclarecido". O foco do grupo – que optou pela designação "consentimento informado e esclarecido" – é a abordagem da autonomia e a valorização da relação médico-paciente.

As recomendações poderão abranger diversos aspectos relacionados a esse consentimento, como a opção pela via verbal ou escrita, formas de leitura e entendimento do paciente, recusa do procedimento, estímulo ao diálogo, relação de confiança, anotações no prontuário, entre outros.

Os médicos estão esperando esse passo nosso; que possamos apontar as diretrizes, o nosso entendimento sobre o papel do termo de consentimento livre e esclarecido, sobretudo, como um instrumento para fortalecer a relação médico-paciente,

afirma o presidente do CFM, Roberto Luiz d’Avila, em uma recente entrevista radiofônica.

Atualmente, o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931/09) aborda o assunto no Capítulo IV, vedando ao médico "Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte." As diretrizes da resolução devem ser seguidas não só por aqueles que exercem atividades médicas, mas também pelos profissionais médicos envolvidos em atividades de docência e pesquisa.

Como podemos notar, esse tipo de relação médico-paciente é embasada na autonomia como princípio absoluto da relação médico-paciente, o que por si só promove questionamentos e críticas, sobretudo, quando sabemos que a autonomia é um princípio caro ao Ocidente e à sua ideologia impregnada de cientificismo e racionalismo, bem como, de um pensar capitalista que promove a individualidade ao extremo. Muitos autores criticaram esse princípio como orientador da relação médico-paciente, alegando inclusive que trata-se de um princípio que não pode ser aplicado sempre, pois como estimular a autonomia acerca de o paciente escolher seu profissional de saúde se em países como o nosso sequer temos um médico para atendê-lo? Por isso diversas críticas à autonomia como dever prima facie foram desenvolvidas.

Crítica ao primado da autonomia/liberdade na relação médico-paciente

Na condição de valor central da modernidade e, também, da contemporaneidade, a liberdade precede a justiça na ordem dos valores (ontologia que precede a ética). Primeiro vem minha liberdade, depois a justiça. Como nos diz Marx, em seu texto “A questão judaica”, a liberdade burguesa é uma liberdade de separação, não podemos jamais ir até ao outro, há uma barreira – a da liberdade – entre nós. Barreira intocável e inquestionável, ao menos na contemporaneidade.

Podemos dizer que a liberdade e os caminhos decorrentes dela constituem o núcleo duro da estrutura social e política da atualidade. O sujeito/indivíduo, dessa mesma atualidade é uma mônada, incapaz de deslocar-se ao Outro, incapaz até mesmo de olhar o Outro, fazendo isso através de uma câmera e da tela de computador, é incapaz de tudo, menos do movimento de englobar o Outro a si e aos seus conceitos. Esse sujeito/indivíduo livre sacrifica o social (cabendo a seguinte questão: se o sacrifício é imposto, onde ficaria sua pretensa liberdade?) em nome da independência e da realização da sua vontade.

Firma-se a aliança entre saber, poder e liberdade agindo na totalização do ser humano em um conceito racional/ontológico.

A liberdade é a regra do jogo totalizante; primeiro impulso e sustentação da identificação do Outro no Mesmo: sou livre para poder subjugar o Outro (mesmo que para tal me utilize de todos os eufemismos possíveis). Entre a liberdade e a Totalidade existe assim uma identificação: A Totalidade só pode ser ‘total’, quando é ‘absoluta’, ou seja, quando seu cerne não é atingido por limitações de liberdade. Essa aproximação entre Totalidade e Liberdade é, por outro lado, oportunidade para uma observação da conexão entre saber e poder. O saber e o poder, em seu caminho em direção à sincronização – ‘sinonimização’, identificação – postulam na realidade duas dimensões da liberdade, duas perspectivas de uma realidade maior: a realidade incondicionada da liberdade que se quer absoluta, para pode; poder, para poder realizar a liberdade na unidade da Totalidade. Essa circularidade sem frestas é o modelo plástico da facticidade completa da Totalidade (SOUZA, 1999).

Uma amostra macroscópica desse pensamento ocidental é a ‘doação’ da liberdade democrática (culta) aos muçulmanos (bárbaros) para que eles possam ser livres como nós somos, ou seja, eles ‘podem’ ser ‘livres’ à nossa maneira.

Com relação ao que foi dito, vale conferir Paulo Freire:

Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros sejam, esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser. Precisamente porque não pode o ter de alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez de poder (FREIRE, 1987).

Exemplo microscópico pode ser encontrado na relação médico-paciente, sobretudo, naquela em que o médico aceita a liberdade do seu paciente, desde que este siga as prescrições daquele que foram realiazadas totalmente (de novo a totalidade) sustentadas pela absoluta verdade e pelo conhecimento científico (saber e poder). O médico utiliza do seu conhecimento racional/ontológico para ‘doar’ a liberdade ao seu paciente, a liberdade de ‘escolher’ o tratamento prescrito pelas verdades da ciência, o que muitas vezes contradiz suas próprias verdades e valores.

A ciência, que nos salvaria, chega ao ponto de, com sua pretensa neutralidade, sequer nos atribuir um valor. Para uma crítica profunda desses e de outros conceitos, utilizamos o pensamento do filósofo lituano E. Levinas, e dizemos que a ontologia reconduz o Outro ao mesmo, neutralizando-o e englobando-o no dinamismo do Mesmo. Por isso, a Ontologia como filosofia primeira é um exercício de egologia, injusto e violento, que coloca a liberdade antes da responsabilidade/justiça.

A Totalidade – da qual a Ontologia fundamental se constitui no canto do cisne filosófico – é o processo de incorporação sistemática e violenta do Outro ao Mesmo, é o tropismo espontâneo e negador da possibilidade da Diferença para além das diferenças interespecíficas e intergenéricas. Ela se dá de forma mais clara na e desde a guerra que é Ser desde os pré-socráticos – e que define o que não é – o Outro. O Ser, incorporando em si toda realidade possível, absorve a possibilidade mesma de pensar a realidade, transforma-se pretensamente, em única realidade pensável, e dá início ao processo de Ontologia – a história da filosofia grega, acompanhando pari passu a história dos horrores da História e dos desafios a ela (SOUZA, 1999).

Em um questionamento crítico da relação médico-paciente, perguntamos, em uníssono com Levinas, qual a relação entre justiça e verdade?

Tradicionalmente, identificamos verdade com inteligibilidade, desvelamento, compreensão, justificação, explicação pela força do intelecto, conhecer – que é explicar, universalizar, reunir a singularidade na generalidade do conceito, trazer à luz a verdade das coisas. Trata-se conhecimento científico e pautado na racionalidade, o poder técnico da medicina em sua mais esplendorosa manifestação.

Enquanto saber, o pensamento é o modo pelo qual uma exterioridade se encontra no interior de uma consciência que não cessa de se identificar sem ter de recorrer para tal a nenhum signo distintivo e é Eu: o próprio. O saber é uma relação do Próprio com o Outro onde o Outro se reduz ao Próprio e se despeja de sua alteridade, onde o pensamento se refere ao Outro, enquanto tal, onde ele é já o próprio, já meu (LEVINAS, 1980).

Como conceber uma relação verdadeira com o paciente, quando essa relação envolve questões importantes como a da imposição poderosa do saber técnico sobre o leigo, a da conjunção desse saber com o poder de vida e morte. Podemos falar de uma relação verdadeira sob essas circunstâncias?

Da verdade (conceitos), derivam as demais teorias para a vida em sociedade e, com o primado da liberdade (verdade burguesa) em relação à justiça, retiro do mundo a necessidade de harmonizar minha liberdade com a dos outros, visto que minha liberdade totalizante tende a englobar o Outro, em vez de relacionar-se com ele.

A aliança entre conhecimento (técnico) e liberdade constitui o fundamento da Ontologia. Se só quem detém o conhecimento e, por consequência, o poder, é livre, qual o papel do leigo na relação médico-paciente?

O conhecer (técnico), elevado à categoria de condutor da humanidade, não apenas mais um instrumento, como de início, nos leva ao domínio do Outro pelo Mesmo.

A Filosofia produz-se como uma forma sob a qual se manifesta a recusa de engajamento no Outro, a expectativa preferida à ação, a indiferença em relação aos outros, a alergia universal da primeira infância dos filósofos. O itinerário da filosofia permanece sendo aquele de Ulisses, cuja aventura pelo mundo, nada mais foi que um retorno a sua ilha natal – uma complacência no Mesmo, um desconhecimento do Outro.

A intenção de Levinas, no que se refere à relação entre justiça e liberdade, é inverter a lógica, a ordem dos termos. Contra a tradição que sempre defendeu a liberdade como condição para se pensar a dignidade do sujeito, invertemos a lógica na busca da verdade. Não é possível instaurar a justiça duradoura partindo do sujeito livre como valor absoluto. Nessa passagem, cremos que a relação médico-paciente, não deve primar pela autonomia/liberdade como direito absoluto, mas sim como cerceada pela responsabilidade e pela possibilidade de doação: o médico, limitado pela responsabilidade de doar-se ao Outro; o paciente, pela possibilidade de doar-se aos cuidados de Outro.

A liberdade/ontologia/racionalidade/técnica como prioridade na busca da verdade, produz violência, injustiça, esquecimento do Outro. É necessário justificar, tornar a liberdade justa. A liberdade entregue ao seu dinamismo não produz justiça. Relação justa, incluindo a relação médico-paciente, é aquela em que a verdade está subordinada à justiça. Como realizar essa relação com nosso paciente/Outro? A resposta estaria no infinito ético que se revela no rosto daquele que sofre, no Outro, em quem se apresenta para o face-a-face da relação médico-paciente. Essas situações podem promover o encontro com a possibilidade de justiça, para muito além da verdade ontológica que tende ao domínio de corpos e da própria vida, para a relação que permite não o prolongamento da experiência humana, mas o alargamento dessa experiência por todo o tempo que nos resta. Relação médico-paciente justa

É o acolhimento de Outrem, o começo da consciência moral, que põe em questão a minha liberdade. Esta maneira de se confrontar com a perfeição do infinito não é, pois, uma consideração teorética. Realiza-se como vergonha em que a liberdade se descobre como mortífera no seu próprio exercício. O discurso e o Desejo em que outrem se apresenta como interlocutor, como aquele sobre quem não posso poder, que não posso matar, condicionam a vergonha em que, enquanto eu, não sou espontaneidade inocente, mas usurpador e assassino. A consciência moral acolhe outrem. A moral começa quando a liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e violenta (LEVINAS, 1980).

O humano não se define como sujeito livre. Se assim fosse, inviabilizaria a relação médico-paciente, relação que deve ser de doar-se ao Outro, movimento que não concebe verdades ou domínio, e sim, responsabilidade, travestida de justiça ao respondermos ao grito de Outrem.

Essa responsabilidade é anterior a mim, minha existência é investida por ela (compromisso com a justiça, atitude ética com o rosto do Outro) quando decido ser médico e abrir mão da liberdade egocêntrica, para doar-me ao Outro, em um movimento que jamais pode ser satisfeito, posto que não pode ser dominado – totalizado –, ou seja, é infinito ético.

Responsabilidade por todos os outros sem reciprocidade, mas responsabilidade que não pertence mais à consciência, não é efeito de uma reflexão ativa, não é mais sequer um dever que possa ser imposto a partir de fora e a partir de dentro. Minha responsabilidade por outros pressupõe tal reviravolta que só poderia ser caracterizada por meio de uma mudança de estatuto do “eu”, uma mudança de linguagem (DI SANTE, 2005).

No acolhimento ao Outro, o sujeito perde o privilégio de ser o centro do mundo (quão difícil para alguns colegas é essa afirmação). Agora o Outro tem a prioridade, é superior. O Outro se revela a partir de uma altura, de uma transcendência, de uma superioridade que não é ontológica, mas ética. Outrem é metafísico, é o que não se deixa representar. Frente ao infinito que se revela no rosto, a tentação de controlar, possuir no pensamento tudo o que se encontra fora de si, sofre um recuo, pois Outrem decreta o fim dos meus poderes; é primado da ética que promove a ruptura do egoísmo ontológico:

A relação com Outrem não se transmuda, como conhecimento, em fruição e posse, em liberdade. Outrem impõe-se como uma exigência que domina essa liberdade e, portanto, como mais original do que tudo que se passa em mim. Outrem, cuja presença excepcional se inscreve na impossibilidade ética em que estou de o matar, indica o fim dos poderes. Se já não posso ter poder sobre ele é porque ele ultrapassa absolutamente toda a ideia que dele posso ter.

O sentido do humano, e por que não, da sua expressão na relação médico-paciente, deixa de ser o ‘para si’ e passa para a abertura ao acolhimento do outro; é a maravilha de um ser que, apesar de si, é capaz de dar prioridade ao outro.

A verdade não é desvelamento, nem universalização via redução a um conceito (ou, no caso do paciente, a um diagnóstico), mas a verdade é justiça, acolhimento (ética). É pensar a possibilidade de justiça para o Outro, encontrar o sentido do humano para além de toda ontologia (ser, razão, liberdade etc.).

Utilizar a relação médico-paciente como lugar para repensar o humanismo, implica reconhecer o fracasso desse mesmo humanismo quando alicerçado na ontologia e no sujeito livre.

Se é verdade que os modelos de humanismo que se baseiam no exercício da liberdade de um eu autônomo, nos moldes impressos pela modernidade, tendem a fracassar – tanto em teoria como enquanto estabelecimento real de relações que sustentam os elos inter-humanos constitutivos de uma sociedade justa –, então é necessário que se fundamente em outra instância de realidade a substância essencial da própria ideia de humano (SOUZA, 2008).

O sujeito para si, que não aceita obstáculos à sua liberdade, é violento e injusto com o Outro. Devemos reconhecer os limites de nossa liberdade, como profissionais médicos, na responsabilidade de cuidar, que vai muito além da de curar.

O fundamento humano não seria a consciência intencional, mas a consciência moral, que nos obriga a preocupar-se com o Outro e respeitá-lo como diferente.

Essa preocupação/responsabilidade, como fundante da relação médico-paciente, nos obriga a responder ao sofrimento do Outro, que se apresenta para além, com infinito de sentido, o qual a racionalidade pura (técnicos em medicina) não abarca.

No rosto do Outro, há um sentido original, ininteligível ao ‘eu penso’ cartesiano, esse sentido é ‘revelado’, não é ‘desvelado’ ontologicamente.

A epifania do absolutamente outro é rosto em que o Outro me interpela e me significa uma ordem, por sua nudez, por sua indigência. Sua presença é uma intimação para responder. O Eu (moi) não forma apenas consciência desta necessidade de responder, como se tratasse de uma obrigação ou de um dever particular sobre o qual ele teria que decidir. Em sua posição mesma ele é integralmente responsabilidade (LEVINAS, 1993).

A verdade diante da presença do rosto não é mais teórica, mas acessível na justiça. Só é possível nos aproximarmos da verdade na relação de acolhimento, de responsabilidade para com o Outro. A verdade não é um encontro do Eu consigo mesmo, como muitos colegas médicos pensam, é sim resposta ao infinito, travestido do Outro, do paciente, que exige justiça. Estamos sendo justos com nossos pacientes?

A verdade se dá no fulcro entre a Totalidade e o Outro da Totalidade. A verdade não é responsabilidade do Mesmo – como descoberta do Ser em seu esconder antiquíssimo – e não é condutível ao Mesmo.

No jogo tautológico da razão que achou sua máxima coincidência consigo mesma no processo de identificação. A verdade é o desafio ético do Olhar do Outro, em originalidade irredutível, e a tentativa de corresponder a esse desafio de maneira justa. O espaço da verdade ética não é nem uma consciência reflexiva transcendental em processo de descoberta de sua onisciência reflexiva, nem o palco de uma guerra – da qual irrompe-se a verdade do Ser. A verdade dar-se-á no nunca acontecido, no infinito decorrer de um futuro ético, no qual sua inteligibilidade sustenta sua própria presença(SOUZA, 1999).

O Rosto, o Outro, o Paciente não pode ser desvelado, nem pelo mais moderno dos exames de imagem, ele apenas pode ser revelado na construção de uma relação mais profunda, de justiça e não de verdade racional totalizante.

Considerarmos o desvelamento do paciente, é reduzirmos o seu Bios à Zoé, satisfazendo-nos com o domínio da biologia humana, como exemplo de domínio sobre o humano.

O acesso ao Rosto não é teorético, mas ético – responsabilidade que torna a liberdade justa.

O homem livre é voltado ao próximo. Ninguém pode permanecer em si, a humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelos outros, uma vulnerabilidade extrema. Bem antes da consciência e da escolha – antes da criação, que a criatura se reúna em presente e representação para se fazer essência – o homem aproxima-se do homem. Ele é tecido de responsabilidades (LEVINAS, 1993).

O Outro em sua exterioridade, convida o Eu à bondade; a transformar minha liberdade, que poderia escolher a si mesma, em responsabilidade, escolhendo servir ao Outro – trata-se de paradigma primeiro da relação médico-paciente. Sendo assim, a liberdade não se justifica a partir de si, mas pela justiça.

O humano no ser começa quando o homem renuncia a essa liberdade violenta, própria daquele que identifica a lei do Ser com um absoluto, quando o ‘eu’ se interrompe no seu projeto de ser, desvia os seus passos e a sua atenção da finalidade que se tinha proposto, porque ouve a voz do estrangeiro, da viúva e do órfão (CHALIER, 1995).

Podemos acrescentar a estes o doente e o moribundo, destituídos do ‘controle’ da vida e, por isso, investidos de humanidade.

A filosofia da alteridade ensina que devemos dirigir à liberdade uma exigência que transcende o duro exercício de ser. Quando negamos a Alteridade e reduzimos o Outro (estrangeiro, órfão, moribundo etc.) ao puramente biológico, passível de invasão, desvelamento e domínio, esquecemos a dimensão ética, que prima pela multiplicidade, pelo respeito à singularidade, à responsabilidade e à justiça.

A Ontologia/racionalidade é a nostalgia da imanência, da síntese final em números, conceitos, veredicto, diagnóstico etc.

[...] a ontologia, por submeter tudo e a todos ao seu denominador, não resguarda a alteridade e a transcendência que a relação metafísica exige. Por isso a ontologia é [...] egologia e violência e a ética que dela deriva e se propõe não passa de ética de interesse e de poder, com justificações racionalizadas (PIVATTO, 2009).

A verdade é justiça, a verdadeira relação ética no respeito à alteridade.

A liberdade está presa ao mesmo, é incapaz de compreender o Outro: “Tal é a definição de liberdade: manter-se contra o Outro, apesar de toda a relação com o Outro, assegurar a autarquia de um eu [...]” (LEVINAS, 1980).

Não há mais espaço para dogmas, donos da verdade, ‘liberdade’ do Eu.

A verdade não é mais entendida como adequação, mas como respeito do Outro enquanto Outro, isto é, metafísica. A liberdade não é mais colocada como força primeira, força que se expande; agora, ela precisa de justificação. Isto não é recair no irracional, pois o irracional não consiste nos seus limites, mas no infinito do seu arbitrário. A liberdade, em consequência, vai nortear-se pela relação da justiça, que a sustenta. Postula-se assim uma nova compreensão filosófico-ética da díade justiça-liberdade (PIVATTO, 1992).

Esse novo caminho, nos abre uma senda por onde pensar a relação médico-paciente; que tipo de relação queremos?

A liberdade ontológica precisa ser justificada pela bondade. A espontaneidade da liberdade ontológica acaba inevitavelmente conduzindo à guerra, à violência, ao conflito de interesses. É necessário justificar a liberdade, não a partir de si, mas sim da justiça. A presença do Outro/Rosto, não representa uma ameaça (aos meus poderes técnico-científicos, exacerbados pelos sonhos dos exames sem limites), mas um apelo ético. “[...] o tu não cometerás assassínio, que esboça o rosto em que Outrem se produz, submete minha liberdade ao julgamento.” (Levinas, 1980).

Sendo assim, a razão de ser da liberdade é a justiça, e a razão de ser da relação médico-paciente é a entrega ao Outro, ralação de confiança e de deposição de si, em um movimento para o Outro.

A verdade do Outro é determinada pela Ética, é uma verdade ética, um questionamento ético do Mesmo. A verdade ética exige uma resposta – uma responsabilidade – ética. Essa resposta ética principia pela negativa do jogo totalitário: a liberdade não pode ser mais ‘absolutamente’ livre, sem que perca imediatamente seu status de liberdade. Liberdade significa, agora, ouvir e responder à exigência ética que transparece na presença do infinito. Eu sou livre para oferecer minha resposta – minha resposta justa – à questão da Alteridade do Outro (SOUZA, 1999).

Eu sou livre para colocar-me, responsavelmente, a serviço do Outro, para não permanecer fechado em minha totalidade - belíssima definição para a relação do médico com seu paciente. O médico é livre, absolutamente livre, para colocar-se, responsavelmente, a serviço do Outro, que nenhum poder possui sobre ele, a não ser o da ética, as relações humanas verdadeiras encontram na justiça o seu fundamento.

Nenhum rosto humano pode ser encontrado de mãos vazias e de portas fechadas. Não necessitando essa afirmação, de códigos, regras ou leis, submete-se apenas à ética – responsabilidade, que abre mão até mesmo da reciprocidade – ela é assunto do Outro – para construir a relação do médico com seu paciente, isenta de interesses que não o de doar-se ao Outro.

A promoção do homem como passagem de ser natural a ser humano passa pela responsabilidade para-com-o-outro, nisto está sua moralidade. Porém, essa responsabilidade não é objeto de escolha pessoal; é investidura anterior à escolha, o outro investe a liberdade, conferindo-lhe sentido.” (PIVATTO, 1999).

Não há escolha, a ética e, o seu apelo, investiram o médico de responsabilidade, antes mesmo que houvesse relação médico-paciente, e a liberdade do médico consiste em entregar-se ao Outro e responder por seu grito.

A relação médico-paciente é uma relação de confiança absoluta?

Notícias sobre novos tratamentos e resultados recentes são divulgadas largamente na mídia escrita ou falada. Esses veículos prestam um serviço importante ao informar ou alertar a população leiga sobre as novidades na área da saúde. Algumas dessas notícias têm origem em estudos apresentados por cientistas em eventos médicos, congressos, simpósios ou grandes reuniões.

Muitas vezes, essas notícias transmitem informações que poderiam alterar o modo de cuidar de um determinado paciente, de uma determinada doença, entretanto, nem sempre o que se apresenta no congresso corresponde à realidade final. Em um excelente artigo publicado no Journal of Clinical Oncology, um grupo de pesquisadores canadenses avaliou 138 estudos publicados em sua forma final, com resultados definitivos, nas melhores revistas médicas de câncer. Os pesquisadores procuraram as apresentações desses mesmos estudos, em congressos médicos importantes, nos anos que precederam a sua publicação final nas revistas de especialidade. O resultado da pesquisa, espantosamente, demonstrou que mais de 60% dos estudos tinham resultados apresentados de forma diferente nos congressos se, comparados à publicação detalhada nas revistas. A discordância era maior (78%) nos estudos que não tinham todos os dados finais analisados. No entanto, para a perplexidade geral dos médicos, mais da metade dos estudos apresentados como resultados definitivos foram modificados de forma importante quando publicados nas revistas médicas de especialidades ou gerais.

Os pesquisadores canadenses responsáveis por esse estudo recomendam a todos os médicos muita cautela na interpretação, e mais ainda na adoção rotineira e automática de resultados divulgados nos congressos médicos.

Por volta de cinco anos, houve uma pesquisa no Brasil, que apontou o médico como profissional mais confiável do País. Cerca de quatro anos depois, nova pesquisa foi realizada, apontando, então, os bombeiros como os profissionais merecedores desse título. Em que pese o efeito mídia, sobretudo após os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos da América do Norte, o que mudou? É verdade que a queda da confiança não ocorreu somente com os médicos, mas com os homens das ciências de uma maneira geral. Podemos buscar explicações, não obstante os diversos fatores envolvidos, em alguns casos pontuais como os expostos a seguir:

Caso 1 - Em 1980, um investigador da Universidade da Califórnia (UCLA) declarou que conseguira dar o salto da Escherichia coli até o homem. Martin Cline, um pesquisador em hematologia, tentara empregar técnicas de DNA recombinante para conseguir a cura de enfermidades humanas. Ao fazê-lo, não obedeceu às normas de pesquisa vigentes ignorou as advertências de seus companheiros e não levou em conta a notável ignorância que se tinha no momento em relação à manipulação genética. Como não interrompera a pesquisa, foi repreendido por sua universidade e pelo Instituto Nacional de Saúde. Cline perdeu seu cargo na instituição e a bolsa para investigação. O cientista estudava a talassemia, uma enfermidade genética. Segundo Cline, seria possível colocar uma cópia normal do mencionado gene nas células sanguíneas do paciente, o que se conseguiria por clonagem de células de uma pessoa sã. A permissão para a pesquisa foi negada pelos biólogos moleculares que a consideraram extemporânea, argumentando que esse passo da ciência deveria ser dado num tempo posterior estimado entre 5 e 10 anos. Efetivamente foi o que ocorreu. Cline, porém, não se conformou com a negativa e apresentou seu projeto para as autoridades médicas de Israel, que o acolheram, dando-lhe permissão para efetuar pesquisas em seres humanos. Através de uma técnica extremamente dolorosa e arriscada, Cline tentou conseguir aquilo que alguns pesquisadores à época imaginaram como um possível Nobel. Nada resultou. A enfermidade permaneceu incólume. Vários foram os equívocos do pesquisador, sem dúvida, o mais importante, foi o de desconsiderar que as técnicas de DNA recombinante existentes eram ineficazes. Hoje, quando utilizamos novas técnicas de DNA recombinante, as possibilidades de Cline ter tido sucesso parecem ainda mais remotas.

Caso 2 – Este caso vem de um congresso que reuniu em Londres alguns biólogos de renome. Reproduzimos a seguir um diálogo entre dois dos mais eminentes cientistas que participaram do mencionado conclave. J.B.S. Haldare discorria sobre a possibilidade de criar formas humanas desconhecidas que permitiriam ao homem maior destreza na exloração espacial. Dizia:

[...]as adversidades mais manifestas no meio extra-terrestre são as diferenças de gravidade, temperatura, pressão e composição da atmosfera.[...] Evidentemente um macaco está melhor preparado que o homem para sobrevivência num meio com menor gravidade [...]. Um macaco com um rabo que permitisse apreensão [...].

E, Haldane assim conclui seu raciocínio: "[...] a inserção de alguns genes especiais talvez permitisse dotar a espécie humana de características físicas parecidas!" A seguir interveio Lederberg, observando com otimismo que, sem dúvida, poder-se-ia conseguir sem grandes dificuldades o proposto por Haldane. Assim se expressou Lederberg: estamos nos preparando para modificar o homem experimentalmente através de mudanças psicológicas e embriológicas e mediante a substituição de diferentes partes do corpo por máquinas. Se desejarmos um homem sem pernas assim o faremos. Se desejarmos um homem com rabo, encontraremos um meio de introduzí-lo. Cabe aqui só uma pergunta: quem serão os escultores dessa nova imagem e segundo que modelos e sobre que base de conhecimentos?

Caso 3 – Este caso esteve nos principais jornais do mundo em janeiro de 1998. Um cientista de Chicago, Richard Seed, dizia estar levantando fundos para a primeira clonagem humana. A comissão do governo dos EUA para clonagem humana sugeriu uma lei proibindo realizá-la. Seed diz ter até mesmo os casais dispostos a fazê-lo. O processo está baseado na clonagem da ovelha Dolly por Ian Wilmut. Vejamos as palavras do próprio: "[...] não é sensato banir uma nova técnica, o conhecimento é neutro-será que os cientistas realmente acreditam nisso? A maneira como ela é aplicada é que deve ser regulamentada". Os mesmos periódicos também publicaram notícias oriundas do Reino Unido dando conta da perspectiva de realização de experimentos de clonagem humana. Nos EUA, Seed afirmava ter o compromisso de "diversos médicos" para auxiliá-lo. Já Iori Andrews, do Departamento de Ética do Chicago Kent College, disse que nenhuma comissão aprovaria o plano de Seed, argumentando que "[...] mesmo nos experimentos com animais há riscos de mutação e morte para o filhote nascido de clonagem." Mas, ainda que o procedimento fosse seguro entre os animais, haveria a possibilidade de problemas psicológicos sérios para a criança. Seed, afirmou que, se fosse proibido de realizar seu projeto nos EUA, iria transferi-lo para algum país da América Latina. Cline e Seed são cientistas que agem segundo juízo próprio e provam que somente quem tem responsabilidade pode agir irresponsavelmente. Segundo o filósofo Hans Jonas "[...] o exercício do poder sem a observância do dever é irresponsável [...] a omissão da responsabilidade é uma forma de irresponsabilidade".

É claro que esses são casos agudos, mas o objetivo dos relatos é perguntar se o fato de os médicos serem detentores do conhecimento científico os transforma em pessoas confiáveis[1]. Mais assustador ainda é quando sabemos de associações com a indústria farmacêutica no intuito de “produzir patologias” com o objetivo de fomentar a venda de medicações, o mesmo ocorrendo no fetiche pelos exames de imagem, largamente estimulado pela indústria que produz tais aparelhos. Até mesmo a maneira de se encarar a medicina e a doença pode influenciar em um diagnóstico e no seu tratamento (ver apêndice com reportagem de Heloísa Vilela para o sítio Viomundo).

Diante de tudo isso, perguntamo-nos: é possível crer em um uma relação médico-paciente totalmente autônoma e confiável?

O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina, que publica o excelente Manual de Orientação Ética e Disciplinar, nos diz sobre a relação médico paciente o seguinte (GRISARD, 2006):

Nas sessões de julgamento de processos ético-profissionais no Conselho, algumas vezes ouve-se esta frase, proferida pela acusação, perante o Corpo de Conselheiros: ‘...não quero que o doutor seja prejudicado: só quero que ele não faça mais o que fez e que trate bem as pessoas...’. Esta constrangedora afirmação, deve ser preocupação constante dos professores de medicina, especialmente daqueles de ética médica, dos Conselhos Regionais de Medicina, dos corpos clínicos e dos próprios médicos individualmente, os quais, todos, não podem ficar indiferentes ao fato.

O mau relacionamento médico-paciente, ao contrário da quebra de sigilo médico, é, ainda, apesar dos esforços, um dos pontos fracos da ética da prática profissional médica.

A sociedade, que se manifestou altamente confiante nos médicos em pesquisa de opinião em fins de 2005, muito aprecia a conduta dos médicos quanto ao culto e à prática do sigilo profissional, porém, a repudia quando o relacionamento médico-paciente não é bom (pesquisa IbopeOpinião, out. 2005).

Embora não devesse existir nenhum, vários são os fatores que levam os médicos a não agradar social e afetivamente seus pacientes e familiares. Eles oscilam entre falta de boa formação social, insuficiente formação ética e condições de trabalho adversas com reflexos sobre a vida socio-econômica do profissional. Dentre as qualidades que o médico deve ter para o bom relacionamento com os pacientes, estão as que se seguem:

1) - a paciência para ouvir, para repetir sem enfado ou irritação, para esperar um resultado;

2) - a dedicação e o empenho integral do saber e das habilidades, sem esmorecimento, sem que se tenha como intenção a recompensa;

3) - a compaixão e o pesar pela dor, a infelicidade e o mal de outrem;

4) - a prudência e a cautela em palavras, gestos e ações;

5) - a discrição ao penetrar no recôndito da alma do paciente, respeitando o sigilo e a privacidade;

6) - a autoridade, a firmeza, calcadas no respeito e na confiança;

7) - a comunicação direta ao falar ao ouvido, ao movimentar as mãos, ao sorrir;

8) - a consciência para não ir além do seu alcance, para ser prudente. O relacionamento médico-paciente impõe compromissos de parte a parte entre médico e paciente: o médico se propõe a fazer o melhor pelo paciente; este se compromete a informar corretamente seu médico sobre seus problemas e a seguir as prescrições e recomendações profissionais que lhe forem feitas.

Esse compromisso solene, pois baseado na confiança mútua, caracteriza um contrato implícito entre médico e paciente, de alto sentido moral; do seu cumprimento resultará o bom ou mau relacionamento médico-paciente. Mas a responsabilidade não é exclusiva do médico! Ela é inerente, também, à conduta dos pacientes e aos sistemas de atendimento. Os pacientes, por razões de natureza variada, entre as quais se inclui a legítima cobrança de honorários, criam situações que desembocam na quebra do necessário bom entendimento entre pacientes, familiares e médico.

Uma razão importante é descrita no conluio do anonimato quando, atendidos por vários médicos, muitas vezes o paciente não forma vínculo com nenhum deles e se expressa: “não sei mais qual é o meu médico!”.

A separação entre ciência e arte nos levou a ganhos nos avanços tecnológicos e a perdas no campo ético do relacionamento.

O mau relacionamento médico-paciente não passa em vão: o médico que não se relaciona bem com os pacientes anda em busca de problemas.

As consequências do mau relacionamento médico-paciente podem ser assim resumidas:

1) - insatisfação, restrita ao nível pessoal e familiar;

2) - reclamações contra o médico junto à direção do hospital;

3) - queixas formais, escritas, junto à Comissão de Ética médica ou direção do hospital;

4) - denúncias formais e consubstanciadas através de advogados constituídos, na polícia, na justiça, ou no conselho de medicina, que acabam gerando as sindicâncias e os processos ético-profissionais;

5) - sindicâncias, em fase preliminar, em que se busca comprovar a existência ou não de indícios de infração ao Código de Ética Médica, podendo encerrar-se em si ou evoluir para um processo ético-profissional, procedimento pelo qual se busca a verdade que orienta para a culpa ou a inocência do denunciado.

O bom relacionamento médico-paciente é tão importante para os doentes quanto um correto diagnóstico e uma eficiente conduta terapêutica. O mau relacionamento médico-paciente é um mal, não somente para os médicos, também para os pacientes!

No relacionamento médico-paciente, os caminhos do direito e do dever se aplicam a médico e a paciente. A diceologia e a deontologia pregam os direitos e deveres do médico para com os pacientes, que, em última análise, são também os direitos destes; do mesmo modo, os pacientes têm deveres para com seu médico que também correspondem aos direitos do médico na tarefa de bem assistir.

Os médicos devem lembrar que “doente é todo e qualquer indivíduo que pede atenção para sua saúde” e há doentes carentes/miseráveis e ricos, humildes e importantes, tranquilos e irritáveis, dóceis e indesejáveis, agradecidos e caloteiros, simples e preconceituosos, orgânicos e mentais, neuróticos e incuráveis, a todos eles, deve o médico o melhor relacionamento possível em nome da excelência e da dignidade da medicina” (GRISARD, 2006).

[1] Ver O Mito da Ciência Neutra.

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